sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O Belo



O conceito de ‘belo’, em princípio, é cultural e não universal, pois - como de resto, os conceitos em geral -, está diretamente relacionado às crenças e conhecimentos dominantes num determinado tempo e/ou num determinado espaço. Melhor dizendo, geralmente somos levados a aceitar ou rejeitar as expressões humanas de acordo com a ideologia que perpassa cada sociedade.

Assim é que, apesar do esforço atual por ‘posturas politicamente corretas’, que tentam abafar preconceitos, a arte africana, por exemplo, ainda é considerada primitiva e praticamente desconhecida no Ocidente, que padece de um inexplicável ‘branqueamento cultural’. A propósito, o black is beautiful é uma noção que quase sempre se restringe aos movimentos de conscientização cultural promovidos por militantes afrodescendentes.

A noção da beleza, portanto, é muito abrangente e tem a ver com tudo o que a vista alcança. É uma questão sensorial infelizmente ‘represada’ pelo raciocínio, que contrapõe o feio ao belo, o rico ao pobre, o certo ao errado. E, numa cultura de mercado, como a nossa, tem a ver também com o que nos é impingido como um valor a ser alcançado, mas que interessa realmente tão-somente ao Poder Econômico. Nesse sentido a beleza negra é hoje decantada na exata medida em que se apresenta como um novo filão no mercado consumidor.

Para a cultura helênica, o máximo parâmetro de beleza se concentrava no efebo, em que pese a importância da divindade feminina – haja vista o mito de Demeter/Perséfone.-. Mas, a literatura grega gira em torno do ‘homem jovem cidadão’ cuja beleza interior e exterior é ressaltada, em detrimento da mulher, praticamente invisível naquela sociedade. Essa ambigüidade – que contrapõe o mito feminino à realidade patriarcal – foi-se tornando mais evidente a partir dos pré-socráticos e se consolidou no raciocínio aristotélico, a partir do qual a lógica se cristalizou, subestimando a mitologia.

Embora sejamos herdeiros dessa tradição cultural, o culto ao físico (masculino) tão caro aos helênicos hoje se aplica tanto a homens como a mulheres, numa ditadura da beleza que se impõe a ambos. Aos homens é impingida a necessidade de sentirem-se ‘sempre’ jovens, a qualquer preço, seja na vaidade de serem vistos como ‘sarados’, ou pela união com belas mulheres, com idade para serem suas filhas, mesmo que para alcançar esse objetivo vejam desfeitas longas uniões anteriores. A beleza está compreendida na juventude ou mesmo na capacidade de atraí-la.

Às mulheres é imposta a ditadura da magreza, que gera deturpações como a anorexia, e também da ‘eterna juventude’ que a indústria cosmética alimenta com a cumplicidade da mídia falada e escrita, em submissão ao Poder Econômico que chega a deturpar a própria ética médica, com desnecessárias cirurgias plásticas, que vão da lipoaspiração a perigosos implantes.

Mas, talvez se possa falar num consenso (ainda que relativo, como tudo na vida) sobre o belo, que se dá na admiração pelas incríveis paisagens engendradas pela natureza - da qual somos parte integrante -, ou suas mais artísticas representações. Admirá-las nos deixa inebriados - numa inefável sensação de prazer e paz, amor e união com o Todo -. Praias paradisíacas, montanhas enigmáticas, rios caudalosos ou regatos cantantes, assim como rostos sublimes, se aliam às flores, à fauna, e ao próprio cosmos para nos encantar.

Infelizmente, o homem moderno está muito ‘eletro-tecnicamente ocupado’ para contemplar as estrelas como sugeria o poeta. A propósito, a poesia engajada também quebrou, de certa forma, o encanto da beleza pura, das palavras extasiantes, não obstante sua eventual ‘beleza sociológica’, o que demonstra a relatividade e abrangência do conceito.

A licença poética, que permite o jogo de palavras, com suas conotações metafóricas, ainda é, quando bem utilizada, um fator de êxtase intelectual, uma forma sutil de cultivo ao belo. A boa música é outro fator de reencantamento da vida, um pouco relegada hoje, pois a criatividade atual muitas vezes se resume a mero ruído, às vezes acompanhado por gritos e letras extremamente vulgares.

O fato é que pintores, dramaturgos, escultores, poetas, compositores se imortalizam em obras que enlevam geração após geração, porque dizem diretamente à alma, num tempo em que (quase) tudo é descartável e a criatividade se nivela às necessidades primárias. A arte, que parece ter nascido com o próprio homem, tem sido a forma mais decantada do belo, inclusive em suas formas surrealistas, enigmáticas ou até mesmo escatológicas.

Mas, por deslumbrante que seja, a arte é mera representação da vida, esta sim revestida da mais profunda e enigmática beleza que o ser humano pode contemplar. Saber vivê-la em sua plenitude, com dignidade e Amor, reencantando o mundo, é a mais nobre forma de expressão do Belo que se pode conceber.

*Resumo de palestra ministrada em curso de Introdução à Filosofia.

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