sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Poder e ambição

A Política é uma ciência e uma arte. Como toda ciência, requer conhecimento e metodologia. Como toda arte, requer habilidade e inspiração.
Todos sabemos que política e poder são indissociáveis, o que nos faz conferir uma certa “importância” a quem a exerce oficialmente. Dirigir, administrar, organizar negócios, seja em organizações públicas ou privadas, dá status, confere prestígio social.
Como padecemos todos (embora em diferentes graus, ou seja, uns mais que outros) de uma certa carência existencial, o prestígio nos é tão caro que o ambicionamos, exaltamos, invejamos.
A auto-imagem que projetamos – e na qual ingenuamente acreditamos – nos faz acreditar que preenchemos todas as qualidades necessárias ao exercício do cargo que ambicionamos, em direção ao qual nos atiramos com garras afiadas, como se fora uma disputa de vida ou morte.
Confundimos competência com competitividade e esquecemos que, para ser e ter Autoridade, não basta querer, há que ser legitimado pelos outros.
A Autoridade é aceita como tal, se impõe por si mesma, sem determinações, ou será mero exercício de autoritarismo. Este é arbitrário (abusivo), pois sobrepõe o interesse pessoal ao coletivo; pretensioso (ambicioso), pois aspira ao poder pelo status que o poder confere; e desumano, pela crueldade com que é invariavelmente exercido.
O exercício da Autoridade tem um fim (término) feliz: leva à consciência do dever cumprido; o do autoritarismo é triste: leva à frustração, ao ostracismo ou mesmo a situações ridículas.
Sobre o tema, há que considerar, ainda, o imprescindível papel da ética. Ética requer princípios, dentre os quais o mais importante é o respeito ao outro, à verdade, à palavra empenhada. Ética requer consciência e responsabilidade. Política sem ética é politicagem, irresponsabilidade, molecagem.
Mas nem só a política confere poder. O dinheiro, a cultura, a beleza, também o outorgam a quem os possui. Poder-se-ia dizer que ambicioná-los comedidamente, dentro de nossa capacidade de administrá-los é um sentimento normal. Essa a prudentia necessária, de que falava Aristóteles.
O problema, como em qualquer paixão a que nos entreguemos, está na desmesura (falta de medida): sem nenhuma, tornamo-nos apáticos, estagnamos; em excesso, toda paixão é deletéria.
Participar social ou comunitariamente, oferecendo o melhor de nós - sem ambições desmesuradas -, é a melhor maneira de fazer jus ao reconhecimento de nossa competência e, conseqüentemente, a mais eficiente forma de fazer jus ao Poder.

Publ. in Revista do Ypiranga nº 121, mai/jun/2003, pág.7.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

AS MÁS CARAS DO PODER

O poder tem caras más. Tem más caras.
Ele tem caras medonhas. Carantonhas.
Tem coronhas e peçonhas.
Vergonhas.

Sol a meio pau bandeiras a pino
Vão destino: Contra o forte cai o tino.
Contra o tino cai a sorte.
É Morte.

Poder saber viver quisera
Poder saber poder viver
Poder saber morrer.
Quimera.

Poder com sorte.
Consorte da Morte.
Poder maldito.
Tenho dito.


quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O porquê dos links

Blog de Cristina Domingos

Formada em Odontologia, Dra. Cristina sempre teve mãos de ouro e uma grande paixão por fotografia. Conheço-a há quase três décadas e tive a honra e o prazer de acompanhar, desde a gestação, seu aprimoradíssimo trabalho de macrofotografia. Acredito, inclusive, ter sido responsável por uma de suas primeiras mostras individuais, realizada há quase uma década no Clube Atlético Ypiranga, que culminou com a transformação em capas de livros de uma renomada Editora, de duas de suas obras ali expostas.
As descobertas de novos componentes, enfoques, e texturas, os sutilíssimos jogos de luz e sombra, a profusão de cores e matizes, a elaborada arquitetura com materiais do cotidiano, sempre revelaram sua alma de artista a nos brindar com novas possibilidades de ver, compreender, sentir o belo que perpassa o micro e o macro.
E é nesse ponto de ligação entre o Multiverso e o Uno que nossos trabalhos se encontram.

Psycogames – Blog de Guilherme Giuntini

Principal incentivador e colaborador de meu blog, Guilherme é habilidoso e criativo nas artes da computação. Embora eu não seja exatamente uma connaisseuse de jogos virtuais e outros entretenimentos com os quais os jovens atuais e atualizados se identificam, percebo que o criador do Psycogames é perito também nessas artes. Acredito que essas qualidades, aliadas à espontânea generosidade que o caracteriza, trarão a esse futuro jornalista uma carreira pontilhada de sucessos.
A perspectiva de que o lúdico pode se concretizar no abstrato caminho do virtual é o ponto de encontro de nossas propostas.

Blog de Rodolfo Martino

Conheci Rodolfo há anos, na época em que ele era diretor da Gazeta do Ipiranga. Desse primeiro encontro tenho duas lembranças: o convite para que eu desse uma entrevista ao Jornal e o exemplar do livro de crônicas de sua autoria Às Margens Plácidas do Ipiranga, que ele gentilmente me ofereceu. Nossos contatos posteriores, infelizmente, foram eventuais.
Agora, no Psycogames, ao encontrar um link com o blog do Martino, descubro que ele é Professor de Jornalismo de meu amigo Guilherme. Considerando que nos últimos anos um dos trabalhos a que me dedico com maior prazer é exatamente a publicação de crônicas e considerando, por outro lado, que não acredito em coincidências, mas sim em sincronicidades, percebo nesse reencontro virtual e literário um elo em nosso trabalho, a justificar também este link.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Molambo

A cor era a do jambo.

Beleza escondida, perdida

sob a sujeira.

Os olhos obnubilados

mal auxiliavam os

passos t r ô p e g o s

a se desviarem dos

Postes e dos buracos,

empecilhos que o mundo

colocou em seu caminho

Molambo.

O Universo Infantil


Dia desses, participando de uma oficina de origami com um grupo de crianças, procurei observar mais atentamente as reações individuais dos pequenos, para ver se conseguia aprender alguma coisa de seu universo, fora de meu restrito entorno familiar.


Ainda que a maioria das crianças prestasse atenção nas orientações, vi um menino de uns seis anos amassar a dobradura do vizinho porque não havia conseguido terminar a sua própria, enquanto uma menina um pouco mais nova atirava um gibi no meio da mesa, sobre os trabalhos dos companheiros, exigindo que a instrutora lesse uma historinha para ela. “Leia agora!”, gritava.


Um garoto de uns oito anos trocou seu trabalho amassado com o do vizinho distraído que já havia terminado o seu e tentava ajudar uma criança menor, enquanto duas meninas também dessa idade se empurravam disputando o mesmo lugar, embora houvesse acomodação para todos.


Será que já não vimos esse filme antes na política, nas ong(s), no clube, na escola, na família? Será que as crianças não estariam apenas reproduzindo socialmente o nosso próprio comportamento, assim como reproduzimos o comportamento social como um todo?


Claro que o universo infantil é muito mais complexo e rico em manifestações, que vão da ansiedade a uma grande persistência, da insegurança a uma criatividade e sabedoria inatas que sempre nos surpreendem.


Sua transparência ainda não está viciada pela dissimulação que caracteriza a vida adulta. É, portanto, uma pródiga fonte de representações que nos permite analisar a nós mesmos e à sociedade em todas as suas expressões culturais. Somos espelhos uns para os outros, assim é melhor nos cuidarmos para que possamos refletir uma imagem digna de ser vista pelas crianças. O futuro agradece.



Publ. in Revista do Ypiranga nº 143, mai/jun/08, pág.5.




terça-feira, 20 de janeiro de 2009

A Educação e os modelos de pensamento

O raciocínio lógico-dedutivo, que até hoje utilizamos como modelo fundamental para a formação de nossas crianças (na família, nas escolas, na Igreja), remonta à cultura grega, realimentado de tempos em tempos, por pensadores racionalistas (ou neo-platônicos).

Assim, noções como a da sobrevivência do mais apto (Darwin), do átomo como uma estrutura rígida e indivisível (Newton), e de que a mente é separada do corpo (Descartes), fortaleceram os princípios da causalidade (a cada ação corresponde uma determinada reação) e da separatividade (eu sou eu, você é você), reforçando a noção de culpa (cada um tem o que merece) e, conseqüentemente, a exclusão.

Todos esses ensinamentos nos foram transmitidos de forma a exacerbar um individualismo competitivo (o que importa é vencer), excludente (os perdedores são incompetentes e não merecem consideração) e materialista (cada um vale pelo que tem, e não pelo que é).

Esse padrão mental linear e reducionista a que fomos condicionados nos apresenta, pois, um mundo sem saídas, que tem como característica básica a bipolarização do ser e do saber, já que alimenta arcaicas e perversas dualidades como certo/errado, bem/mal, apego/rejeição, rico/pobre, forte/fraco, sujeito/objeto, etc.

Nesse contexto, nosso mecanismo de fuga é nos entregarmos a uma alienação comodista, que aceita soluções prontas e imediatistas, que nos são dadas como verdade absoluta, na forma de estereótipos e de ditados populares. A falta de saídas criativas, que é fruto de um automatismo que privilegia o argumento da autoridade, transforma em senso comum noções sem fundamento na realidade, que perpetuam preconceitos e favorecem uma ideologia de dominação, que se resume em exclusão social e violência.

A supervalorização do desenvolvimento técnico-científico e a submissão a uma Economia de Mercado globalizada foram a contribuição final do pensamento linear para a crise generalizada que ora atravessamos e que se traduz, em suma, no desrespeito progressivo aos direitos humanos, numa inversão, ou mesmo perda total dos mais básicos valores universais.

A par de atingir a sociedade como um todo, essa situação se reflete profundamente na área da Educação, atingindo alunos e professores que se defrontam com questões como a miséria, o desemprego e a desagregação familiar crescentes, a par da desenfreada proliferação de drogas e violência no interior das próprias escolas, não bastassem os problemas específicos que a missão educacional envolve.

Reconhecendo que os parâmetros do pensamento centrado exclusivamente na razão humana são insuficientes para solucionar os problemas dele mesmo decorrentes, hoje se propõe a mudança para um paradigma ecocentrado. Melhor dizendo, propugna-se por um deslocamento do antropocentrismo – pensamento centrado no homem, que utiliza a natureza segundo seus interesses, como um bem a ser dominado -, para a noção ecológica, que leva em conta a necessária participação relacional entre natureza, seus seres e seus saberes, na harmonia do todo sistêmico em que estamos inseridos.

A essa maneira de pensar deu-se o nome de pensamento sistêmico, pois dá elasticidade ao racional, admitindo a intuição, a meditação, o sonho e o insight como fontes complementares do conhecimento, que é necessariamente multicultural e transdisciplinar. A utopia passar a ser vista como “esperança revolucionária”, para usar a expressão do educador Paulo Freire.

Quanto à formação educacional institucionalizada, passa a permitir a elaboração de currículos mais integrados à realidade do aluno, nos quais as várias disciplinas são vistas como interdependentes entre si e com a totalidade do conhecimento a ser transmitido, mas voltadas às necessidades concretas da vida.

A idéia central do pensamento sistêmico foi enunciada por Pascal como a impossibilidade de se conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como é “impossível conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes”. O cerne dessa idéia, desenvolvida entre outros pelo filósofo francês Edgar Morin, é distinguir, sem separar.

O reconhecimento da interdependência de todas as coisas, embora se apresente com nova roupagem, sob o título de Teoria da Complexidade, foi encampado dos antigos ensinamentos que apresentavam o mundo como uma imensa e dinâmica teia ou rede de relacionamentos que a tudo interconecta. A Biologia, a Física Quântica (sub-atômica), a Informática e a Filosofia pós-moderna tiveram extraordinário avanço com a adoção dos “novos” princípios que informam o pensamento complexo.

Edgar Morin resgatou o antigo sentido do verbo latino complexere (abraçar), entendendo o pensamento complexo (com + plexus (enlaçamento) = “o que está tecido junto”) como a conjugação entre o pensamento linear (tão útil às questões mecânicas) e o pensamento sistêmico (mais apropriado aos problemas bio-psico-sociais).

Complexidade, assim, passa a ser entendida filosoficamente como uma visão mais abrangente da vida, do homem e do mundo, com suas semelhanças, diferenças e contradições, que se interpenetram e interagem entre si, de maneira invisível, mas profunda.

Entender o pensamento complexo, portanto, é compreender que, entre o sim e o não, existe uma gama de possibilidades que se revelam como um talvez (princípio da incerteza) e que as coisas não são isto ou aquilo, mas isto e aquilo (princípio da inseparabilidade e, portanto, da inclusão).

Se o “pensamento complexo é aquele que pratica o abraço”, como diz Morin, conceitos como alteridade e altruísmo (de alter, “outro”), cooperação, diversidade e co-participação devem ser abraçados como imprescindíveis não somente à harmonia, como também à própria sobrevivência de todas as espécies, inclusive a do homo-sapiens.

Nesse contexto, cabe aos educadores reavaliar o importante papel que desempenham na construção social, levando em conta os novos paradigmas que se impõem à formação responsável das gerações mais jovens. Coragem (agir com o coração), criatividade, consciência ética e disposição para o aprendizado e o trabalho, são alguns dos fatores indispensáveis para que concretizem a nobre missão pela qual optaram.


Resumo de paletra ministrada para professores da rede pública de SP, em outubro de 98.



segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Meditação

Nas últimas décadas, a idéia de meditação foi infiltrada na cultura tradicional do ocidente, de forma muitas vezes excêntrica para nossos padrões. Assim, o mundo cristão viu-se de repente inundado por novas correntes espirituais, que lhe apresentavam a meditação tibetana, zen, hindu-yoga ou mesmo meditações criadas aleatoriamente por alguns ditos gurus, que colocavam em xeque nossos dogmas milenares, o que a tornou uma prática de certa forma marginal.

E é exatamente por estar ligada milenar e tradicionalmente aos ensinamentos místico-religiosos que a meditação tem sido sistematicamente psicologizada. O que me parece, neste momento, é que a meditação precisa ser desmistificada e encarada como algo tão natural e necessário ao ser humano, quanto a locomoção e a alimentação.

Afinal, o que é meditar? Conceitos existem ás mancheias. Técnicas, também. Ensinam-se procedimentos facilitadores (muitas vezes complicadores) ou indutores de um estado meditativo, mas o conteúdo deverá sempre caber ao praticante, ou não passará de uma manipulação autoritária.

Assim como o corpo precisa de um tempo para adequação e aprendizado, até que possa, paulatinamente, ensaiar seus primeiros passos e ingerir alimentos cuja digestão é mais complexa, a introdução à meditação também pressupõe conhecimento, preparo e adaptação.

Não há fórmulas melhores ou piores, pois praticar meditação é uma questão essencialmente subjetiva. A meu ver, meditar é um estar-disponível à inspiração e à transcendência, a qualquer momento e em qualquer lugar, desapegado dos estímulos externos que nos induzem a um permanente estado re-ativo. Meditar é, portanto, um estado de espírito.

Alimento do espírito e importante meio de locomoção para os vários níveis da consciência, a prática correta da meditação requer um certo amadurecimento psico-mental – uma mente compassiva, uma inteligência fundada no amor – antes de alçar grandes vôos.

Como ensina Krishnamurti, pré-requisito da meditação correta é colocar a “casa psicológica” em ordem (desejos, prazeres, relacionamentos, etc.), sem o que podemos sentar de pernas cruzadas ou mesmo ficar de ‘cabeça para baixo’ pelo resto de nossas vidas, que apenas seremos levados a toda espécie de ilusão.

Significa dizer que as práticas meditativas não devem ser usadas como terapia, embora sejam reconstitutivas ou transformadoras da consciência, pois, a meditação sistemática pode promover a integração do Self e ajudar a curar as dores da alma ou até mesmo a nos religar com o cósmico ou outras tantas formas de doação de sentido para a vida.

Mas meditar, acima de tudo, diminui a ansiedade existencial, porque nos descondiciona das mazelas do passado e das frustrantes expectativas quanto ao futuro. É uma forma bastante confiável de buscar o autoconhecimento, principalmente se for praticada constantemente.

Uma das formas mais conhecidas e praticadas de meditação é a entoação de mantras, fórmulas que podem estar contidas em uma palavra, um verso ou uma oração que, de tanto serem repetidas, nos induzem a um estado contemplativo, instalando-se em nosso coração e em nossa mente.

Outras formas de “suporte” para a prática da meditação são a vitalidade (observar a respiração), a reflexão – exclusivamente sobre um tema ou uma frase, a identificação com uma qualidade (o sentimento do amor ou da paz, por exemplo), ou a imaginação direcionada (ou visualização, que inicialmente deve ser exercitada com orientação de um instrutor, para não se confundir com fantasia).

O importante, a meu ver, é não ficar preocupado em “parar os pensamentos” como muitos ensinam, mas deixar que eles fluam sem se apegar a eles. Quando estamos tentando meditar, se algum pensamento perturbador insistir em chamar nossa atenção, não devemos nos envolver com ele, mas penas ‘observá-lo’ tranqüilamente e ele se afastará.

Aliás, a tranqüilidade é essencial a quem se dispõe a meditar. Assim, procurar um lugar silencioso, sentar-se comodamente, inspirar e expirar profundamente (sem forçar), relaxar o corpo e a mente na medida do possível, é um bom começo. Pode-se, também, simplesmente observar a inspiração e a expiração, sentindo o ar entrando e saindo de nossas narinas.

Com essa prática por 10 minutos, duas vezes ao dia, iremos aprendendo a soltar as tensões do corpo e as preocupações da mente, formando o “ânimo de prontidão” que aos poucos nos despertará para a verdadeira meditação. A persistência é o grande segredo.

Leituras sobre o tema também são indicadas porque nos vão tornando mais receptivos e conscientes de que a meditação é uma real possibilidade de auxílio para tornar a vida mais tranqüila. A prática diária desinteressada é como um investimento que nos fortalece para enfrentar os problemas do cotidiano.

* Publ. durante algum tempo, sob o título Meditar é Preciso, no site Caminhos do Equilíbrio, da terapeuta e especialista em cromoterapia Dra. Sílvia Fávero.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Consciência Linear e Relações Humanas

Palavras são meros símbolos convencionais (signos) - como já no Século 4 ensinava Santo Agostinho -, simples forma (significante) de apontar para algo cuja noção (significado) pretendemos transmitir. São, portanto, paradoxais, ambíguas, polivalentes, como o é o ser humano, como é a própria vida.

Sem outro meio de expressão que a linguagem articulada, busco traduzir na escrita um desabafo da consciência, de forma dialógica, convidando-os a uma reflexão mais aprofundada sobre um tema que escapa ao senso comum - , mas que, não obstante, vem sendo repetido à exaustão, desde a mais Alta Antiguidade, por pensadores de todos os quadrantes, no geral sem encontrar eco nesta segura e cômoda caverna platônica em que nos deixamos estar.

A primazia do racionalismo cartesiano - como se a Verdade fosse passível de ser apreendida pelo mero raciocínio -, privilegiou uma lógica reducionista que, se por um lado teve o mérito de incrementar as ciências, por outro tornou-se o maior responsável pela fragmentação do ser e do saber, o que culminou por deflagrar a crise planetária que hoje enfrentamos.

Princípio básico milenarmente intuído, que ora retorna na teoria da complexidade, é o inter-relacionamento de todas as coisas entre si e com o todo, e deste com cada uma delas, ou seja, o respeito à multidimensionalidade do conhecimento e da própria consciência. Essa nova matriz da realidade, de alguma forma oferece sustentação para uma ruptura com as concepções racionalistas e seus princípios da dualidade e fragmentação.

Pois bem, se inumeráveis mestres de todos os tempos, todos os quadrantes e todas as áreas - de Sancaracarya a Krishnamurti, de Lao-Tsé a Jung, de Nagarjuna a William James, de Platão a Heidegger, de Heráclito a Einstein, de Shakespeare a Tagore, Gandhi, Aurobindo, Chardin ou Sartre, Camus, Dostoiévski, Maturana e Morin -, repetem, de forma um tanto mântrica, idéias que escapam, no mínimo, da dualidade, por que nos condicionamos à fórmula “Penso, logo existo” como possibilidade única de conhecimento?

Será que o mero raciocínio resiste à questão primordial do “Quem sou”?

Biologicamente, Vaz e Varela nos diriam que o organismo, para detectar alguma coisa que lhe é estranha, tem que conhecer a si próprio. Filosoficamente, Sócrates partiria do “Conhece-te a ti mesmo”. Psicologicamente, Jung diria que é preciso integrar todas as instâncias da psique ao self, ponto central e ao mesmo tempo totalidade do consciente e do inconsciente.

Enfim, todos os caminhos apontam para uma reforma do pensamento, uma mudança de padrões mentais, uma postura de inclusões neste mundo de exclusões. E um primeiro passo nessa nova senda é o autoconhecimento, um diálogo interior racional-intuitivo que não busca soluções, mas consciência do grande paradoxo universal do uno e do múltiplo.

Essa co-participação da experiência na consciência, do múltiplo no uno e deste na unidade, se dá como possibilidade - entre outras - na meditação a que se entregam não só yogues e santos famosos, mas incontáveis heróis anônimos que não dispensam um reencontro com o ethos (nossa morada interior), perdido na fragmentação do conhecimento e do próprio ser.

* Resumo de Ensaio publ. in Thot nº 68, 1998, pág. 22/26.

Aquário


Perdi a noção do tempo.

E como passatempo,

Sonho nadar nas águas

Do teu aquário.

Ser teu cão, teu gato, teu cavalo.

Mas isso é desvario

Pois sei que não te abalo.

Olho ao redor e o mundo inda respira

E cada vez mais, você me inspira.

Num misto de ódio e de Amor

Meu corpo aspira, na saudade,

O teu odor. O teu calor.

Penso em teus olhos e tenho uma visão:

A mais pura água-marinha.

Minha pedra preciosa mais dileta.

Seleta. Predileta.

Quisera toda minha,

Mas sei que é ilusão.

Dizem que é a pedra da sorte

Do meu signo.

Mas acredito talismã da morte.

Maligno.

E morro aos poucos

Da ausência de você.

Reencontro


Nós combinamos. Juramos.

E entramos no esquecimento

Do renascimento.

Então viemos, crescemos, vivemos...

Promessas mil esquecemos

E quando chegou a hora

Você passou, nem me olhou.

O “acaso”, no entretanto,

Um dia nós dois juntou.

Você, displicentemente,

Apenas semi-acordou.

E a gente, inocentemente,

Sorriu da sorte e dançou.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

HE R Ó I S

Tarde dessas, entre raios e trovões que faziam prever uma chuva torrencial, desliguei o computador acreditando assim proteger meu trabalho de uma eventual queda de energia e resolvi assistir ao noticiário, preocupada com o estrago que a tempestade que se avizinhava pudesse estar fazendo em outras regiões da cidade.

Na zona norte, o flagelo não vinha dos céus, mas parecia surgir do inferno, já que o fogo grassava assustadoramente numa favela. Na tela, bombeiros se expunham ao perigo enquanto alguns moradores travavam uma batalha (pasmem!) entre eles próprios. Sim, homens brigavam, mulheres desmaiavam, crianças choravam, aumentando o trabalho dos bombeiros que se dividiam entre o combate ao fogo e o atendimento a todos.

Desconsolada, mudei o Canal. Mais um drama, enfrentado agora pela polícia militar: Baderneiros de uma comunidade próxima à Marginal Tietê atiravam pedras nos policiais, chamados para desimpedir o trânsito que eles haviam paralisado ao fechar a via expressa e algumas ruas das proximidades, ateando fogo a pneus. Horário de rush, confusão total por uma bandeira inusitada, pois (pasmem novamente!), a manifestação havia sido deflagrada contra a transferência de presos perigosos após uma rebelião na penitenciária.

Antes de mudar novamente o Canal, me impus uma condição: ‘apenas mais uma tentativa’! Na tela, dois policiais civis atolados às margens de um córrego barrento tentavam, em luta inglória, salvar uma mulher que fora levada pelas águas que despencavam dos céus da zona Leste. Já ia desligar, quando o apresentador assumiu uma postura indignada para anunciar que “os gastos da Administração Pública com o ‘nosso’ (dele?) dinheiro, não diminuíram, apesar dos vergonhosos serviços públicos prestados”.

“Vergonhosos”? Desliguei e chorei. Pelo sofrimento de toda uma população inerme diante da fúria dos elementos e de sua própria ignorância. Pelo diuturno heroísmo mal reconhecido e mal pago de tantos servidores. Pela inversão de valores alimentada por alguns aproveitadores que desonram toda a classe Política e por parte de uma mídia bem paga, que faz acreditar que todo servidor é ‘Marajá’ e que sequer paga impostos.

Desconsolada, senti-me impotente num primeiro momento e me encorujei, mas a seguir, inspirada pelo heroísmo de tantos servidores anônimos, que não se deixam abater não obstante a discriminação que os transforma em ‘bodes expiatórios’ das mazelas sociais e governamentais, me reergui. Religuei o computador e tentei fazer a minha parte da forma que me é mais familiar: escrevendo.

* Crônica publicada in Folha do Servidor Público nº 185, abril/2008, pág. 9.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Violência e Cidadania: Um Diálogo Impossível


Violência é o uso da força - física ou não - para constranger ou para coagir alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. É agressão, conduta destrutiva que, em princípio, não se confunde com a agressividade, entendida esta como força ou dinamismo necessário até mesmo à sobrevivência. Assim, a agressividade geralmente é positiva, enquanto a violência é sempre negativa. Violência ou agressão era a forma de solução de conflitos pré-jurídica, em que se utilizavam as vias de fato, às quais mais tarde vieram a sobrepor-se as vias de direito. Toda violação de direito é, portanto, uma espécie de violência.

O conceito de cidadania tem variado no tempo e no espaço. Na Grécia Antiga, apenas os homens livres eram cidadãos, ficando excluídos os escravos, as mulheres e os estrangeiros, ou seja, a maioria da população. Até fins do século XIX, guardadas as devidas proporções e os diferentes contextos, a situação não era melhor, especialmente nas colônias européias sob a égide escravagista.

Exemplo dramático de ausência de cidadania é também a exploração de mão-de-obra na Revolução Industrial, com suas trágicas condições de vida e profundas injustiças sociais paradoxalmente fundamentada nas propostas igualitárias do liberalismo jurídico e econômico então dominantes. A respeito, destaquei em meu Ensaio “Consciência Linear e Relações Humanas”, publicado na Revista Thot 68/98, um impressionante relato de Segadas Vianna, como alerta aos simplórios ou mal-intencionados propugnadores do neoliberalismo desestatizante.

Mesmo no “democratizado” século vinte, em períodos de ditadura, a cidadania, em seu sentido mais estrito, de liberdade de ir e vir ou de votar e ser votado, tem sido praticamente abolida, mas são geralmente regimes de exceção, em que vigora o Estado de Força e não de Direito, muitas vezes demasiadamente prolongados.

Nossa experiência democrática é muito recente e submissa às ideologias dominantes. Mulheres, analfabetos e jovens entre os dezesseis e os dezoito anos de idade recém-conquistaram o direito de voto. Nosso modelo mental ainda é essencialmente dualista e, portanto, excludente, não obstante a chamada Constituição Cidadã (1988) ofereça garantias contra a discriminação.

Na prática, há uma fragmentação social geradora de grupos privilegiados, com consequente exclusão das “minorias” que, na verdade, compõem a maior parte da população. Essas "minorias" são levadas a se fechar em grandes guetos, nos quais muitas vezes se comportam como ratos enjaulados, que se devoram uns aos outros na luta por espaço e sobrevivência, seja por falta de união ou de acesso ao conhecimento e às condições mínimas de saúde, lazer, higiene e trabalho, isto é, por não gozarem da verdadeira cidadania.

Violência simbólica - Por outro lado, um pequeno número de privilegiados que detêm o poder sócio-político, midiático ou econômico, alia-se na criação de formas hábeis de manutenção de seu status, agindo em geral subrepticiamente, com receio de perder a hegemonia.

Não sendo física, essa invisível “violência doce da razão”, geralmente passa despercebida inclusive por aqueles contra quem se destina, cuja ingênua cumplicidade acaba por legitimar a imposição, ajudando a neutralizar as possíveis reações, pela consensualidade.

Bons exemplos são a culpabilização dos servidores públicos pelos desmandos da Administração ou as chamadas “leis para inglês ver”, que concedem benefícios jamais auferíveis pela população, por prescindirem de regulamentação, sempre adiada.

O caso mais flagrante, embora haja inúmeros, é o do salário mínimo, fixado num valor que permite tão só a compra de uma cesta básica de alimentos. Emparedados entre a violência real e a violência simbólica, trabalhadores, em geral desempregados ou mal pagos, idosos, mulheres, negros, deficientes, analfabetos, permanecem mentalmente anestesiados, mal se apercebendo da discriminação jurídico-social a que são submetidos.

Dessa forma, tornam-se joguetes de uma mídia-laranja, a serviço de políticos e empresários poderosos, recebendo as notícias por um prisma distorcido, assimilando uma cultura nivelada por baixo e consumindo bens que lhe são impostos como necessidades e que os mantém atados a uma roda de ilusões e ...dívidas.

Alguns, mais conscientizados, movimentam-se no sentido de uma participação efetiva em busca de melhores paradigmas, esquivando-se das torrentes manipulatórias e procurando apreender o verdadeiro significado dos acontecimentos, sem se deixar levar pela visão estereotipada com que lhes são apresentados. Reconhecem, assim, a premência de uma participação ativa de todos os atores sociais para que se efetive a necessária mudança de comportamento mental, que deve preceder as transformações sócio-político-econômicas.

Esse é o verdadeiro sentido do diálogo, pressuposto da cidadania como participação plena, que exige direitos e obrigações recíprocas, cuja práxis demanda, no mínimo, humanidade no trato com o outro, seja ele quem for. Aqui se incluem até mesmo as ações ecológicas, das quais depende o futuro da Mãe Terra e de seus filhos, dentre os quais somos apenas uma espécie, infelizmente a mais predatória. Ouvir a voz da natureza, da qual somos parte, e antecipar os riscos que podemos causar à sobrevivência do planeta é um trabalho tão importante quanto a prevenção de doenças, drogas e criminalidade. É, portanto, uma ação de cidadania.

Cooperação - Todas essas ações exigem cooperação, pois o individualismo e a competitividade são duas das mais importantes causas da fragilidade generalizada e do medo que afetam a população, tornando-a propensa a aceitar a dominação e a violência real ou simbólica que impossibilitam o resgate da cidadania.

Ser cidadão, portanto, é aplicar e fazer aplicar concreta e indiscriminadamente os direitos (e deveres) humanos, tirando-os de sua condição de mera abstração e desvirtuamento; é reconhecer os pontos de fragilidade do sistema e envidar esforços para sua superação, participando efetivamente da busca de soluções que nos beneficiarão a todos. Assim, o alcance da cidadania plena não se coaduna com a violência sob qualquer de suas formas.

· Resumo de palestra ministrada no Espaço “Creche da Cidadania”, na Livraria Ícone, em S.Paulo, no dia 23/04/2001, publ. na íntegra in Thot 76/2001, pág.37/42.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

A Culpa nossa de cada dia


A culpa é um fenômeno característico das tradições monoteístas, incorporado pela civilização ocidental a tal ponto, que nem mesmo a profunda revolução cultural do último século conseguiu superar.

Ao contrário do que seria de se esperar, a liberdade de costumes veio acarretar, a par dos novos valores sociais, uma nova carga de culpa, antes inimaginável.

Assoberbada pelo ônus cultural que lhe impôs responsabilidades exclusivas na criação e educação dos filhos e nos cuidados com o lar, hoje a mulher enfrenta o grande dilema de conciliar a carreira com o papel de mãe e esposa e se sente culpada, seja qual for sua opção.

Em contrapartida, o homem se sente angustiado diante da necessidade de se adaptar às novas necessidades cotidianas, para as quais não foi preparado emocionalmente. Culpa-se por não ser mais o grande provedor; culpa a esposa por dedicar-se a uma carreira, em detrimento de suas “obrigações” com o lar; culpa-se por culpá-la.

Por outro lado, a progressiva conscientização política e ecológica, de alguma forma, entra em choque com a tendência para a competitividade e o consumismo, acrescentando ao “mal-estar” inerente à cultura, detectado por Freud, uma nova dose de culpa.

Uma das formas mais efetivas de aliviar a consciência culposa, que homens e mulheres vêm encontrando - a par da responsabilidade familiar dividida -, é a prestação de trabalho voluntário das mais variadas espécies.

Infelizmente, ao se doarem pelo bem-estar do próximo, correm o risco de ver suas intenções deturpadas por aqueles a quem sobra tempo – por nada fazerem – de projetar suas próprias culpas naqueles que têm coragem de se expor, na busca por uma sociedade mais justa.

Redirecionar as energias perdidas nessas projeções inúteis, num trabalho efetivo pelo aprimoramento das relações sociais, é uma oportunidade de tornar mais leves nossas dores e aquelas que causamos aos outros pelas limitações que a consciência dolorosa quer nos impor.

Parafraseando mestre Darcy Ribeiro, eu diria que na vida, só temos duas alternativas: fazer (ele dizia “indignar-se”) ou acomodar-nos (significando indiferença, vitimização ou crítica destrutiva). Entre as duas posturas, também me parece que a primeira é a mais nobre, pois “fazer” exige coragem.

Como doar sangue, doar-se a si mesmo, num trabalho em prol da comunidade – seja ela carente ou clubística –, sem expectativas de reconhecimento ou retribuição, gratifica o físico e a alma, tornando-nos mais dignos de fazer parte da coletividade humana.

* Publ. in “Revista do Ypiranga” nº 120, março/abr/2003, pág.7.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Gota d'água

O próximo golpe seria a gota d’água. Tinha certeza.

A indiferença já se instalara nela há tanto tempo, nem lembrava mais que já fora feliz. Ou pensara ser. Mas, agora era diferente. Estava tão cansada!

Nem sentiu a última pancada. Só o baque surdo e aquele calorzinho úmido que vinha da cabeça e descia pelo corpo. Ouviu a porta bater com força.

- “Graças a Deus! Acabou, por hoje”.

Agora precisava descansar, mas assim que tivesse forças iria andar, cabelos esvoaçando, passo cadente, como não fazia de há muito. Talvez fosse ao parque, como nos velhos tempos. Ele podia fazer o que quisesse, já não se importava. Aliás, nunca se importara muito. Só no começo, andava assustada pelos cantos, nem sabia com o que.

Gozada essa vida. Nunca lembrava dos velhos tempos, e hoje uma saudade...

Seus pais se tinham ido tão cedo! Os irmãos, principalmente o Paulinho, tão bonzinho, por que se teriam afastado? E a amiga Mariinha, sempre no pé do Toninho? Talvez devesse ter deixado que ela ficasse com ele. Mas ele era tão lindo!

Os pais eram contra, especialmente o pai, sempre com aquele jeitão calado, os olhos brilhando de amor. Avisara-a: “Não vai dar certo. Ele é muito agressivo, não é homem pra você”.

Mas quando ele ia esperá-la na porta da fábrica, sentia aquele ‘friozinho gostoso’, as amigas morrendo de inveja.

E foi, contra a vontade deles. Pela primeira vez, ela, sempre tão cordata, desobedecera ao pai. - “Ai, que cansaço, por que tenho que pensar nisso agora?”. Estranho, não sentia nenhuma dor, mas o corpo, pesado, nem conseguia se mexer.

Teria sido culpa sua? Está certo que ele andava muito triste, mas dizem que todos esperam pelo menos o terceiro enfarte pra morrer, por que logo seu pai tinha que partir no primeiro?

A mãe o seguira em pouco tempo. Nem imaginara que ela podia morrer tão cedo. Parecia tão fria, tão distante. E ela mesma, não estava se sentindo distante? Mas, fria não era. Ou seria? Afinal, não havia abandonado a família? Ou eles é que a teriam abandonado?

- “Oh, meu Deus! ... Que confusão.”

Sempre confundira as coisas. Principalmente os sentimentos dos outros. Imagine! Pensar que Toninho a amava. Bem que seu pai tinha razão, como sempre. O que ele queria era uma empregada, um saco de pancadas, uma escrava. Só faltava o tronco. Mas ele era tão lindo!

- “Pai!!! Que alegria! Como veio parar aqui? Cadê mamãe?”

- “Alô, filhinha, vamos dar uma volta? Ponha um vestido leve que está uma tarde muito bonita.” - “Tarde? ... Engraçado, pensei que fosse noite.”

Pegou seu vestido branco. Sempre amara roupa branca. Branca e leve. - “Vamos?”, disse o pai, com aquele sorriso adorável, que a fazia voltar à infância.

Retribuiu o sorriso e segurou sua mão.

Realmente a tarde estava linda. Só que as pessoas, na rua, pareciam muito ocupadas para notar.

“Por que a gente é assim?”, pensou ela.

A mão do pai era firme e amiga, embora calejada do trabalho duro, ao contrário das de Toninho, pesadas e sempre úmidas. Como não notara isso antes?

- “Pai, olha o Parque”. E correu, sentindo-se livre como nunca.

Olhou-se no lago. Pareceu-lhe ter rejuvenescido.

As flores tinham cores vivas e brilhantes. Recolheu uma margarida que algum vândalo arrancara e jogara displicentemente sobre a grama, e colocou-a nos cabelos.

Saiu rodopiando pela alameda. Aqui e ali, casais se beijavam. Algumas crianças jogavam bola.

Tinha esquecido o quanto o mundo é belo. Sempre amara a Natureza e se afastara tanto dela. Mas agora havia de recuperar o tempo perdido.

Numa curva, ela o viu. Toninho vinha abraçado com duas mulheres, mais alguns amigos. Barulhentos e cambaleantes, assustavam os transeuntes.

Observou-o horrorizada. Aparentava estar drogado, olhos saltados e empapuçados, bochechas caídas, passos trôpegos. De há muito não o olhava atentamente. - “Cadê a beleza do Toninho?”.

Esquecera-se de desviar. Quase a atropelaram. - “Eles nem me viram”, suspirou, aliviada.

Olhou ao redor. Seu pai parecia ter desaparecido. Quando ia gritar, ouviu sua voz agradável. - “Vem, filha”.

Do alto de uma grande pedra, ele lhe estendia as mãos.

- “Como faço para chegar até aí? Não tem escada...”

- “É só querer, filhinha”. - “Eu quero”. E lá se foi ela.

O parque parecia ainda mais bonito visto de cima. Toninho e sua turma atravessavam o portão, quando a polícia os deteve.

- “Que será que ele fez desta vez, pai?”.

- “Não importa mais, meu bem, você se libertou”.

- “Quem sabe agora, sem drogas e bebidas ele volta a ser bonito, né, pai?”.

- “Quem sabe, filha”.

*Conto místico escrito no início da década de 80, em protesto contra a violência doméstica. Recusado, à época, pela editora de uma Revista Feminina, nos seguintes termos: - “Muito confuso, meu bem. Você tem que escrever de forma mais inteligível. E, também, falar em drogas! O público não gosta dessas coisas.

**Publ. in "O Meirinho em Roteiro", set/out/1981, pág.10

Preconceito: Uma Arma Mortífera

Preconceito, do latim praeconceptu, significa prejulgamento e tem uma conotação negativa e, de alguma forma, agressiva, a respeito de algo ou alguém. Enquanto permanece em nível mental, estamos no âmbito do pré-juízo individual, sem questionamentos e leviano; posto em ação, o preconceito envereda pelo campo ilegal da discriminação.

Discriminar é segregar, separar, excluir, fruto do preconceito cujas perversas consequências geralmente não se restringem ao plano individual, chegando a afetar imensos contingentes de seres humanos. A história nos dá conta de atrocidades perpetradas sadicamente em nome de Deus, do bem ou da liberdade.

Em todos os tempos e em todas as partes onde ocorreram, as alegações dos agressores apenas tentavam dissimular seu verdadeiro fundamento: preconceito, prepotência, ódio cego, inveja ou a mais perigosa ignorância: a de quem pensa que sabe. Mas a intolerância humana tem muitas outras caras. Esses são apenas alguns dos fenômenos detonadores da cega intransigência com índios, negros, “bruxas”, judeus, “infiéis”, homossexuais, etc, grupos historicamente perseguidos ou explorados, excluídos socialmente, confinados a guetos em sub-humanas condições de vida, quando não violentamente torturados e massacrados, com a complacente conivência dos privilegiados.

A incursão legal brasileira contra a discriminação é recente, limitada e ineficaz, pois os aplicadores ainda patinam numa noção claudicante de cidadania, atrelados que estamos todos a um saber ideológico que privilegia o argumento do opressor contra ‘minorias’ que, na verdade, constituem a maioria da população, um imenso contingente de deficientes cívicos.

Em suma, cidadão no Brasil, como em boa parte do mundo ocidental, é preferencialmente o homem branco, rico, culto e heterossexual. A tragicomédia maior é a capacidade de pactuar dos próprios oprimidos, seja por interesse, covardia, ignorância, ou por introjeção inconsciente do preconceito.

São vítimas que, desconhecendo sua própria força e muitas vezes nem mesmo se reconhecendo como tal, passam a participar do processo, de forma a perpetuar a situação de exclusão, acomodando-se ou aderindo à competitividade predatória, à violência e a outros meios inábeis de convivência social.

Atualmente se fala muito em cidadania plena, com participação ativa de todos os grupos minoritários nos destinos sociais, mas o paradigma é discursivo, muito distante da realidade. O preconceito e a ausência de cidadania de que são vítimas bilhões de pessoas no terceiro mundo, se revelam na consideração absurda de que a fome e a exclusão social são ocorrências “banais”, meros “efeitos colaterais” da pobreza reinante, debitada à ignorância, à incompetência e a uma indolência natural nativa.

A eleição circunstancial de ‘bodes expiatórios’ para as mazelas sociais revela o caráter ideológico do preconceito. Essa forma de violência simbólica afasta a justiça, reforçando a desigualdade e alimentando a estereotipia, um movimento reacionário que consiste na atribuição de características fixas a alguém, geralmente a um grupo, desconsiderando-se o contexto, as particularidades e a riqueza das diferenças individuais.

Os noticiários nos dão conta de que os pobres, as mulheres e os negros constituem, como regra, o tripé sobre o qual se assentam os vários tipos de preconceito. Aos diferentes tipos correspondem estereótipos diferentes.

Nossa cultura está fundada no mito da superioridade masculina que desconsidera a interdependência entre os gêneros, subestimando e discriminando mais da metade da humanidade, sem a qual sequer existiria.

Hoje, à lei do mais forte, agrega-se a do mercado que tem na globalização o grande agente de manutenção do status quo. Globalizam-se a pobreza, os preconceitos, a exploração de mão-de-obra, concentrando-se cada vez mais o capital em mãos de uma minoria privilegiada. A liberdade das pessoas atrela-se à situação econômica de que desfrutam. O ser humano é o objeto que acompanha o seu dinheiro, pois que este é o sujeito para quem as portas se abrem.

O consumismo inconsequente alimenta a exploração e o preconceito, mas como toda moeda tem duas faces, a “descoberta” de novos filões consumistas tem o condão de abrir algumas portas sociais e até jurídicas, levando segmentos ancestralmente discriminados, como homossexuais, negros e deficientes físicos a vislumbrarem a possibilidade da cidadania.

Experiências mal resolvidas, que têm origem em nossa herança tradicional autoritária, geram os condicionamentos que contaminam as relações interpessoais, traduzidas em monólogos inaudíveis pelas partes envolvidas, ou seja, ninguém ouve ninguém.

A questão é principalmente educacional e, portanto, não prescinde do empenho dos familiares, pedagogos, religiosos, militantes comunitários, profissionais da mídia e da boa vontade das autoridades em promover políticas públicas de integração e de incentivo à educação, a par de uma legislação anti-discriminatória mais eficaz.

O caminho passa ainda pela busca individual de autoconhecimento, sem o qual jamais superaremos o automatismo que caracteriza nossas relações sociais. Reaprender a pensar e a conviver, imprimindo relevância ao diálogo e à aceitação da diversidade como fatores inalienáveis do desenvolvimento humano, são algumas das metas que se propõem para um melhor entendimento entre os homens.

*Resumo de Ensaio publ. in Thot 78/2003, pág.34/40.

T e i a

Sou uma mosca presa numa

Teia de aranha.

Pressinto as patas pegajosas

Enquanto mais me emaranho.

Na ânsia da escalada

Sinto que me abocanham.

E no negrume e terror, me quedo,

Então,

INERME,

A vida se esvaindo sem qualquer façanha.


Publ. em 1982, in Coletânea do 4º Mural de Poemas de Jacarezinho, PR, como parte dos festejos de aniversário do Município, sob patrocínio do SESC, em nível nacional.


sábado, 3 de janeiro de 2009

QUEBRA-CABEÇAS

Às vezes, em minhas reflexões, imagino a vida como um imenso quebra-cabeças que, por algum motivo incompreensível, resolvemos armar sem que sequer tenhamos um modelo.

Alguém, cujas intenções desconhecemos, nos teria remetido uma enorme caixa com os dizeres “Jogo da Vida”. Dentro, misturam-se inúmeras peças que identificamos como partes de um jogo de armar que imediatamente nos fascina pelo colorido, pelo prazer lúdico e, principalmente, pelo desafio que todo enigma proporciona.

Despejamos avidamente o material sobre um tablado, que servirá de pano de fundo para a nossa “construção” e nos deslumbramos com as sutis diferenças de tonalidade e formato que apresentam, com a incalculável quantidade de peças, com o tamanho de nossa própria curiosidade.

Excitados com a novidade, enchemos as mãos aleatoriamente e atiramos as peças para o alto, na esperança de que, ao caírem, a sorte nos ofereça alguma pista para o início da empreitada. Cedo, porém, nos damos conta de que só com uma boa dose de paciência, perseverança e bom senso, lograremos algum êxito.

Paulatinamente, nos dispomos a ir separando as peças que formarão a moldura do trabalho e ordenando-as ao redor do tablado, sobre o qual passamos a nos debruçar diariamente, embora nem sempre com a mesma disposição de espírito.

Vez por outra, questionamos o motivo de havermos nos lançado numa tarefa que nos parece inglória, sem sentido, inútil mesmo. Diante das dificuldades vacilamos, fraquejamos, pensamos em desistir.

Alguns, mais afoitos, chegam a destruir as partes já organizadas, por lhes faltar a visão do conjunto.A seguir, num momento de lucidez, lamentam o próprio descontrole...e recomeçam.

As primeiras recompensas da dedicação surgem no vislumbre de pequenos quadros, que vão surgindo aqui e ali, não obstante a existência de vazios entre eles – que alguns vêem como clarões e outros como buracos negros, dependendo da cor do tatame (pano de fundo) que utilizaram.

Com o tempo, embora cansados, às vezes exaustos, quase todos conseguimos levar a bom termo a tarefa que nos impusemos ou – e jamais saberemos – que nos foi sutilmente imposta pelo nosso enigmático doador.

Realizada a missão, alguns têm forças para erguer-se do tablado – em que pesem as dores nas juntas pelas desconfortáveis posturas assumidas – e conseguem admirar o conjunto de sua obra. São os privilegiados.

Outros, infelizmente, são excluídos do prazer final – como sempre o foram – e simplesmente adormecem no duro chão sobre o qual permaneceram ajoelhados durante tanto tempo, sem terem oportunidade de saber o que – se é que – construíram.

De qualquer maneira, todos acabam por dormir o sono dos justos.

Publ. in Revista do Ypiranga nº 122, jul/ago/2003

Ressentimento

A vida moderna, com seus perversos paradigmas de competitividade e consumismo, gera uma inadequação entre as possibilidades pessoais e as exigências ambientais, ou, melhor dito, entre a pessoa e seu ambiente.
O constante estado de expectativa, decorrente da tentativa de corresponder às imposições sociais potencializa nossa ansiedade existencial, revelando-se sob a forma de sentimentos dolorosos como culpa, inveja, solidão, angústia, raiva, impotência, frustração e muitos outros.
Entre as questões interiores mais mal resolvidas, causadoras de permanente estresse, destaca-se o ressentimento. Ressentir-se é magoar-se (no mais das vezes, à toa); é melindrar-se cada vez que a auto-imagem que construímos é abalada; é, enfim, sentir novamente - às vezes por anos a fio, ou por toda uma vida - todos os sofrimentos que a ofensa, real ou imaginária, nos causou.
Há alguns anos, a atriz
Beatriz Segall, em interessante entrevista, metaforizou bem a questão ao dizer que “ressentir-se é como patinar no mesmo buraco como a roda de um carro atolado". Para sair desse ‘buraco’ parece-me que é necessária uma mudança nos padrões de pensamento e, consequentemente, de comportamento, afirmando a necessidade de viver melhor o momento presente, sem carregar o peso adicional de um incidente que já passou e restabelecendo as relações em termos mais fraternos.
Culpa e ressentimento são formas cruéis de autopunição que precisam ser liberadas pelo perdão, para que se libere também a capacidade de sentir e gerar prazer, cuja busca, porém, não pode ser predatória e ilimitada. Caso contrário se tornará nova fonte de culpa, que nos fará entrar num círculo vicioso. O autoperdão nos permitirá o abrandamento necessário para conseguir perdoar o próximo.
Uma dica para exercitar o perdão é começar com doses homeopáticas, perdoando as pequenas coisas e as pessoas com as quais não temos maior envolvimento e lembrando-nos de que esse exercício é também em nosso benefício, pois ficaremos, no mínimo, mais tranquilos.
Descarregar as tensões diárias, ‘soltando’ músculos e articulações e tentando apaziguar nossos pensamentos por alguns minutos, alivia o peso dos problemas diuturnos, torna a vida mais leve, induz paz e bem-estar, propiciando o estado amoroso e a criatividade.

A vida no planeta seria altamente beneficiada se os ressentimentos e crises pessoais, que geralmente nos desestruturam, fossem encarados como molas propulsoras das transformações sociais. O grandioso trabalho de Gandhi em prol da humanidade, talvez não tivesse sequer sido iniciado, se ele não tivesse sofrido na carne a discriminação dos britânicos, a quem tanto admirara em sua juventude. Seria uma perda incomensurável para o mundo, se ele houvesse mergulhado na frustração e no ressentimento pelas graves ofensas recebidas.
Sem a pretensão ilusória de nos tornarmos Mahatmas, talvez pudéssemos tentar ser um pouco mais verdadeiros conosco mesmos, com o outro e até com o divino. Para citar apenas o cristianismo, por exemplo, lembro que quando oramos o Pai Nosso, pedimos ao Senhor que “perdoe as nossas ofensas, assim como nós perdoamos os nossos ofensores.

Perdoamos mesmo? Ou será que apenas repetimos automática e ingenuamente uma mentira até ao próprio Deus, que conhece nossos sentimentos mais recônditos? Se assim é, como queremos ser perdoados? Detectar é importante, mas não é suficiente. Há que praticar o diálogo honesto e o perdão, diuturnamente, de modo persistente, para sair do automatismo anestesiante em que estamos mergulhados. Há que reaprender a ouvir o outro, ou jamais sairemos do monólogo sem sentido, ressentido.
Mas, antes e acima de tudo, temos que aprender a ouvir e conhecer a nós mesmos, restabelecer relações com nosso ethos - nossa morada interior -, única construção com estrutura suficientemente forte para não se deixar abalar por circunstâncias passageiras. A inspirada frase de São Paulo sintetiza a questão: “Refugia-te em teu coração e não haverá ventania que possa derrubar-te”. Assim, alguns dos antídotos mais poderosos contra a culpa e o ressentimento –ou, eventual e indiretamente, contra a proliferação de doenças decorrentes do estresse que esses sentimentos produzem -, não se adquirem em farmácias. Estão potencializados dentro de nós, como poções mágicas colocadas gratuitamente à nossa disposição e suas fórmulas mais eficientes são o Amor - e amar também se aprende, pois implica a compreensão do outro e o autoconhecimento - e a tolerância, que importa paciência e perdão.

Resumo de Esnsaio publ. in Thot.

Cf. http://palasathena.org.br/produtos_descrição.asp?codigo_produto=71

Máscaras de si


As pessoas são surpreendentes e interessantíssimas. Máscaras, de fato, de si e para si mesmas. Daí os relacionamentos serem o que são: complicadíssimos, quando poderiam ser, simplesmente, complexos.
Não por acaso, o termo pessoa vem do latim persona, que na antiga Grécia designava a máscara que os atores usavam em cena. Não por acaso, adotamos uma máscara que todos confunde e, ingenuamente, somos, inclusive por nós mesmos, tomados por quem não somos.
Por isso, ninguém conhece ninguém, já que sequer nos conhecemos a nós próprios. Melhor dito, não nos reconhecemos no outro, embora nele projetemos todas as nossas mazelas.
Surpreendentes, sim, porque estamos sempre a nos surpreender com o outro e conosco mesmos. Nossa natureza é insondável, que me perdoem psicólogos e psicanalistas.
Interessantíssimas, se nos dermos ao mero trabalho de observar o entorno, com um pouco de fascínio no olhar. Porque é fascinante a nossa atuação no mundo, atores brilhantes que somos todos no imenso teatro da vida.
Personagens-tipo de uma fabulosa tragicomédia, rimos da desgraça que ajudamos a causar aos outros, choramos da desgraça que ajudamos a causar a nós mesmos.
Talvez, se espalhássemos espelhos refletores em lugares estratégicos do palco, pudéssemos ver o quão patética se torna nossa atuação, quando não respeitamos o tempo e a vez dos outros atores.
Após ter escrito este texto, caiu-me às mãos a poesia TABACARIA, de Fernando Pessoa, cuja estrofe XV transcrevo:


“Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho.
Já tinha envelhecido.
(...).” *



Publ. In “Revista do Ypiranga” nº 116, maio/jun/2002, pág.7.
* Fernando Pessoa – Seleção poética – Biblioteca Manancial em convênio com o Instituto Nacional do Livro – MEC – 1971.