quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Gota d'água

O próximo golpe seria a gota d’água. Tinha certeza.

A indiferença já se instalara nela há tanto tempo, nem lembrava mais que já fora feliz. Ou pensara ser. Mas, agora era diferente. Estava tão cansada!

Nem sentiu a última pancada. Só o baque surdo e aquele calorzinho úmido que vinha da cabeça e descia pelo corpo. Ouviu a porta bater com força.

- “Graças a Deus! Acabou, por hoje”.

Agora precisava descansar, mas assim que tivesse forças iria andar, cabelos esvoaçando, passo cadente, como não fazia de há muito. Talvez fosse ao parque, como nos velhos tempos. Ele podia fazer o que quisesse, já não se importava. Aliás, nunca se importara muito. Só no começo, andava assustada pelos cantos, nem sabia com o que.

Gozada essa vida. Nunca lembrava dos velhos tempos, e hoje uma saudade...

Seus pais se tinham ido tão cedo! Os irmãos, principalmente o Paulinho, tão bonzinho, por que se teriam afastado? E a amiga Mariinha, sempre no pé do Toninho? Talvez devesse ter deixado que ela ficasse com ele. Mas ele era tão lindo!

Os pais eram contra, especialmente o pai, sempre com aquele jeitão calado, os olhos brilhando de amor. Avisara-a: “Não vai dar certo. Ele é muito agressivo, não é homem pra você”.

Mas quando ele ia esperá-la na porta da fábrica, sentia aquele ‘friozinho gostoso’, as amigas morrendo de inveja.

E foi, contra a vontade deles. Pela primeira vez, ela, sempre tão cordata, desobedecera ao pai. - “Ai, que cansaço, por que tenho que pensar nisso agora?”. Estranho, não sentia nenhuma dor, mas o corpo, pesado, nem conseguia se mexer.

Teria sido culpa sua? Está certo que ele andava muito triste, mas dizem que todos esperam pelo menos o terceiro enfarte pra morrer, por que logo seu pai tinha que partir no primeiro?

A mãe o seguira em pouco tempo. Nem imaginara que ela podia morrer tão cedo. Parecia tão fria, tão distante. E ela mesma, não estava se sentindo distante? Mas, fria não era. Ou seria? Afinal, não havia abandonado a família? Ou eles é que a teriam abandonado?

- “Oh, meu Deus! ... Que confusão.”

Sempre confundira as coisas. Principalmente os sentimentos dos outros. Imagine! Pensar que Toninho a amava. Bem que seu pai tinha razão, como sempre. O que ele queria era uma empregada, um saco de pancadas, uma escrava. Só faltava o tronco. Mas ele era tão lindo!

- “Pai!!! Que alegria! Como veio parar aqui? Cadê mamãe?”

- “Alô, filhinha, vamos dar uma volta? Ponha um vestido leve que está uma tarde muito bonita.” - “Tarde? ... Engraçado, pensei que fosse noite.”

Pegou seu vestido branco. Sempre amara roupa branca. Branca e leve. - “Vamos?”, disse o pai, com aquele sorriso adorável, que a fazia voltar à infância.

Retribuiu o sorriso e segurou sua mão.

Realmente a tarde estava linda. Só que as pessoas, na rua, pareciam muito ocupadas para notar.

“Por que a gente é assim?”, pensou ela.

A mão do pai era firme e amiga, embora calejada do trabalho duro, ao contrário das de Toninho, pesadas e sempre úmidas. Como não notara isso antes?

- “Pai, olha o Parque”. E correu, sentindo-se livre como nunca.

Olhou-se no lago. Pareceu-lhe ter rejuvenescido.

As flores tinham cores vivas e brilhantes. Recolheu uma margarida que algum vândalo arrancara e jogara displicentemente sobre a grama, e colocou-a nos cabelos.

Saiu rodopiando pela alameda. Aqui e ali, casais se beijavam. Algumas crianças jogavam bola.

Tinha esquecido o quanto o mundo é belo. Sempre amara a Natureza e se afastara tanto dela. Mas agora havia de recuperar o tempo perdido.

Numa curva, ela o viu. Toninho vinha abraçado com duas mulheres, mais alguns amigos. Barulhentos e cambaleantes, assustavam os transeuntes.

Observou-o horrorizada. Aparentava estar drogado, olhos saltados e empapuçados, bochechas caídas, passos trôpegos. De há muito não o olhava atentamente. - “Cadê a beleza do Toninho?”.

Esquecera-se de desviar. Quase a atropelaram. - “Eles nem me viram”, suspirou, aliviada.

Olhou ao redor. Seu pai parecia ter desaparecido. Quando ia gritar, ouviu sua voz agradável. - “Vem, filha”.

Do alto de uma grande pedra, ele lhe estendia as mãos.

- “Como faço para chegar até aí? Não tem escada...”

- “É só querer, filhinha”. - “Eu quero”. E lá se foi ela.

O parque parecia ainda mais bonito visto de cima. Toninho e sua turma atravessavam o portão, quando a polícia os deteve.

- “Que será que ele fez desta vez, pai?”.

- “Não importa mais, meu bem, você se libertou”.

- “Quem sabe agora, sem drogas e bebidas ele volta a ser bonito, né, pai?”.

- “Quem sabe, filha”.

*Conto místico escrito no início da década de 80, em protesto contra a violência doméstica. Recusado, à época, pela editora de uma Revista Feminina, nos seguintes termos: - “Muito confuso, meu bem. Você tem que escrever de forma mais inteligível. E, também, falar em drogas! O público não gosta dessas coisas.

**Publ. in "O Meirinho em Roteiro", set/out/1981, pág.10

2 comentários:

Unknown disse...

Suzete o primeiro conto que li foi Gota d'água.
Me emocionei, é lindo, como um editor pode não compreender de imediato o que havia ocorrido. Estranho o jornalismo na época...ou conveniente é algo que se luta a tempos, quantas mulheres sempre sofreram e sofrem caladas a greções de seus amores. Você teve bom gosto ao escolhê-lo.

Suzete Carvalho disse...

Que bom que você gostou Sueli. Na verdade, eu gostaria de avançar no debate sobre o tema, pois a violência doméstica continua a ser uma trágica realidade. Como no conto, as agressões físicas ainda são causa de óbito de mulheres e crianças e nós não temos o direito de nos omitir. Espero que, com o tempo, outras leitoras se manifestem, para que possamos estabelecer um diálogo sobre possíveis formas de conseguirmos ver um dia essa "doença" social ser erradicada, não apenas em sua forma física, mas também moral e psicológica.