quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Violência e Cidadania: Um Diálogo Impossível


Violência é o uso da força - física ou não - para constranger ou para coagir alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. É agressão, conduta destrutiva que, em princípio, não se confunde com a agressividade, entendida esta como força ou dinamismo necessário até mesmo à sobrevivência. Assim, a agressividade geralmente é positiva, enquanto a violência é sempre negativa. Violência ou agressão era a forma de solução de conflitos pré-jurídica, em que se utilizavam as vias de fato, às quais mais tarde vieram a sobrepor-se as vias de direito. Toda violação de direito é, portanto, uma espécie de violência.

O conceito de cidadania tem variado no tempo e no espaço. Na Grécia Antiga, apenas os homens livres eram cidadãos, ficando excluídos os escravos, as mulheres e os estrangeiros, ou seja, a maioria da população. Até fins do século XIX, guardadas as devidas proporções e os diferentes contextos, a situação não era melhor, especialmente nas colônias européias sob a égide escravagista.

Exemplo dramático de ausência de cidadania é também a exploração de mão-de-obra na Revolução Industrial, com suas trágicas condições de vida e profundas injustiças sociais paradoxalmente fundamentada nas propostas igualitárias do liberalismo jurídico e econômico então dominantes. A respeito, destaquei em meu Ensaio “Consciência Linear e Relações Humanas”, publicado na Revista Thot 68/98, um impressionante relato de Segadas Vianna, como alerta aos simplórios ou mal-intencionados propugnadores do neoliberalismo desestatizante.

Mesmo no “democratizado” século vinte, em períodos de ditadura, a cidadania, em seu sentido mais estrito, de liberdade de ir e vir ou de votar e ser votado, tem sido praticamente abolida, mas são geralmente regimes de exceção, em que vigora o Estado de Força e não de Direito, muitas vezes demasiadamente prolongados.

Nossa experiência democrática é muito recente e submissa às ideologias dominantes. Mulheres, analfabetos e jovens entre os dezesseis e os dezoito anos de idade recém-conquistaram o direito de voto. Nosso modelo mental ainda é essencialmente dualista e, portanto, excludente, não obstante a chamada Constituição Cidadã (1988) ofereça garantias contra a discriminação.

Na prática, há uma fragmentação social geradora de grupos privilegiados, com consequente exclusão das “minorias” que, na verdade, compõem a maior parte da população. Essas "minorias" são levadas a se fechar em grandes guetos, nos quais muitas vezes se comportam como ratos enjaulados, que se devoram uns aos outros na luta por espaço e sobrevivência, seja por falta de união ou de acesso ao conhecimento e às condições mínimas de saúde, lazer, higiene e trabalho, isto é, por não gozarem da verdadeira cidadania.

Violência simbólica - Por outro lado, um pequeno número de privilegiados que detêm o poder sócio-político, midiático ou econômico, alia-se na criação de formas hábeis de manutenção de seu status, agindo em geral subrepticiamente, com receio de perder a hegemonia.

Não sendo física, essa invisível “violência doce da razão”, geralmente passa despercebida inclusive por aqueles contra quem se destina, cuja ingênua cumplicidade acaba por legitimar a imposição, ajudando a neutralizar as possíveis reações, pela consensualidade.

Bons exemplos são a culpabilização dos servidores públicos pelos desmandos da Administração ou as chamadas “leis para inglês ver”, que concedem benefícios jamais auferíveis pela população, por prescindirem de regulamentação, sempre adiada.

O caso mais flagrante, embora haja inúmeros, é o do salário mínimo, fixado num valor que permite tão só a compra de uma cesta básica de alimentos. Emparedados entre a violência real e a violência simbólica, trabalhadores, em geral desempregados ou mal pagos, idosos, mulheres, negros, deficientes, analfabetos, permanecem mentalmente anestesiados, mal se apercebendo da discriminação jurídico-social a que são submetidos.

Dessa forma, tornam-se joguetes de uma mídia-laranja, a serviço de políticos e empresários poderosos, recebendo as notícias por um prisma distorcido, assimilando uma cultura nivelada por baixo e consumindo bens que lhe são impostos como necessidades e que os mantém atados a uma roda de ilusões e ...dívidas.

Alguns, mais conscientizados, movimentam-se no sentido de uma participação efetiva em busca de melhores paradigmas, esquivando-se das torrentes manipulatórias e procurando apreender o verdadeiro significado dos acontecimentos, sem se deixar levar pela visão estereotipada com que lhes são apresentados. Reconhecem, assim, a premência de uma participação ativa de todos os atores sociais para que se efetive a necessária mudança de comportamento mental, que deve preceder as transformações sócio-político-econômicas.

Esse é o verdadeiro sentido do diálogo, pressuposto da cidadania como participação plena, que exige direitos e obrigações recíprocas, cuja práxis demanda, no mínimo, humanidade no trato com o outro, seja ele quem for. Aqui se incluem até mesmo as ações ecológicas, das quais depende o futuro da Mãe Terra e de seus filhos, dentre os quais somos apenas uma espécie, infelizmente a mais predatória. Ouvir a voz da natureza, da qual somos parte, e antecipar os riscos que podemos causar à sobrevivência do planeta é um trabalho tão importante quanto a prevenção de doenças, drogas e criminalidade. É, portanto, uma ação de cidadania.

Cooperação - Todas essas ações exigem cooperação, pois o individualismo e a competitividade são duas das mais importantes causas da fragilidade generalizada e do medo que afetam a população, tornando-a propensa a aceitar a dominação e a violência real ou simbólica que impossibilitam o resgate da cidadania.

Ser cidadão, portanto, é aplicar e fazer aplicar concreta e indiscriminadamente os direitos (e deveres) humanos, tirando-os de sua condição de mera abstração e desvirtuamento; é reconhecer os pontos de fragilidade do sistema e envidar esforços para sua superação, participando efetivamente da busca de soluções que nos beneficiarão a todos. Assim, o alcance da cidadania plena não se coaduna com a violência sob qualquer de suas formas.

· Resumo de palestra ministrada no Espaço “Creche da Cidadania”, na Livraria Ícone, em S.Paulo, no dia 23/04/2001, publ. na íntegra in Thot 76/2001, pág.37/42.

2 comentários:

Carolina Medeiros disse...

Olá Dra. Suzete, sou repórter do Jornal Ipiranga News e gostaria de fazer uma matéria com você. Sobre o seu trabalho.

Por favor, entre em contato comigo pelos telefone 2914-0655 - Ramal 2008 ou pelo celular 7530-4149.

Aguardo retorno.
Abraços,
Daniela Vietri 16/01/2009

Suzete Carvalho disse...

Olá, Daniela
Acabo de receber um exemplar do Jornal de 27/02, com a publicação da entrevista na página 3, por isso respondo ao seu comentário somente agora,embora tenhamos mantido contato logo após sua postagem. Gostaria que soubesse que a publicação já rendeu várias visitas ao blog e alguns contatos muito especiais, no sentido de promover maior divulgação. Daí a importância do papel da mídia na difusão cultural. A entrevista foi elogiada por várias pessoas, crédito que atribuo a sua competência como jornalista. Obrigada e um abração.