quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Palavras

Palavras!

Posso usá-las, trabalhá-las,

Invertê-las, fazê-las bailar,

Até criá-las.

Mas jamais expressarão

O que me vai n'alma,

No mais profundo, recôndito,

No âmago do meu Ser.

Há que extrapolar

A própria poesia.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Bom dia

PARTE II
Maria louca tinha os olhos saltados e uma risada sem motivo. Cobrou mais caro que um hotel de luxo. O quarto, imundo, causou em Cláudia uma sensação desagradável, um misto de asco e temor. - “Ao menos, tem chave”, consolou-se. Pensou em dormir sentada, pois a rede era nojenta, mas o cansaço a venceu.
Altas horas, acordou sobressaltada, com a impressão de ouvir fortes gemidos provenientes do quarto ao lado. A princípio, pensou que fosse imaginação, talvez ratos, já que havia muita sujeira ali. Segundos depois, porém, teve a certeza de que alguém pedia socorro, em tom baixo e profundo.
Abriu a porta devagar. O corredor, escuro, estalava a cada passo. Acendeu o isqueiro e queimou o dedo, soltando um gritinho. Bateu na porta ao lado, delicadamente, depois mais forte. Como ninguém respondesse, tentou entrar. Estava trancada. Tentou, então, duas outras portas, ambas fechadas.
O silêncio era rompido apenas pelo estalar do piso e por um “tic-tac” vindo de uma espécie de saleta no fim do corredor, protegida por uma cortina imunda presa de um lado por um imenso laçarote vermelho. Entrou. A um canto, uma lamparina lançava sombras fantasmagóricas. Quase tropeçou num “arranjo” de penas pretas, lambuzadas em um líquido vermelho, que exalava um odor estranho.
– “Que mau gosto”, pensou, fazendo instintivamente o sinal da cruz. Com o movimento, deixou cair o isqueiro sobre aquela “gosma” e não ousou resgatá-lo. Ao fundo, um banco alto fazia as vezes de altar, adornado com imagens e flores artificiais. Um despertador antigo, escorado por duas garrafas, devolveu-a à realidade. – “Graças a Deus, não era uma bomba” falou alto, inadvertidamente, assustando-se com o som de sua própria voz.
À luz da lamparina, verificou que os ponteiros do relógio marcavam exatamente 4 horas. Ao virar-se para sair, “Oh, Deus”, viu que uma cobra se enrolara junto à parede, bem próximo à porta. Saiu na ponta dos pés, para não despertá-la e, já no corredor, disparou rumo a seu quarto, trancando bem a porta. Quando conseguiu controlar as batidas de seu coração, ouviu um último gemido.
- “Esta vai ser a noite mais longa da minha vida. Onde se terá metido a velha louca? Estaria morta no quarto ao lado”? Sentiu um arrepio, espécie de premonição. – “Não, os sons eram masculinos, tinha certeza. A voz de dona Maria era esganiçada, não se parecia em nada com aquilo”.
Passou o restante da madrugada a maldizer Marcos, rezar, pensar se a família já teria descoberto seu desaparecimento, sem conseguir concatenar as ideias. Parecia um sonho, uma alucinação. De repente, percebeu que já clareara e havia ruídos lá fora. - “Meu carro”! E saiu correndo.
Um caminhão à porta, parecia trazer mantimentos. O caminhoneiro e dona Maria conversavam. Afobadamente interrompeu-os e passou a descrever os acontecimentos noturnos. A velha abriu a boca, numa gargalhada estridente. - “Que bobagem, filha, eu nunca tranco portas e não tinha mais ninguém em casa esta noite. E, fique sabendo, eu morro de medo de cobras. Deve ter sonhado”.
O caminhoneiro, penalizado, quis confirmar. Percorreram todos os cantos da casa. Nada. As portas dos quartos estavam empenadas, mas abriram sem grandes esforços. O estranho arranjo da saleta desaparecera sem deixar vestígios e a cobra ... transformara-se em nada mais que um simples pedaço de corda enrolada.
- “Não lhe disse?”, esganiçou Dª Maria, tentando ser simpática. “Venha tomar um copo de leite quente que passa tudo”. O copo cheirava a cachaça, mas engoliu todo o conteúdo e ainda aceitou uns bolinhos de mandioca amanhecidos, pois ainda teria que enfrentar a estrada e fizera um jejum forçado, desde a véspera.
O caminhoneiro, Mário, era muito gentil. Tinha gasolina e ia voltar, após as entregas, até a estrada de onde ela havia partido. Não podia dividir o combustível, mas possuía uma corrente muito forte e poderia rebocar o carro de volta, até encontrarem um posto.
- “Se eu contasse, ninguém acreditaria”, pensou, respirando aliviada ao avistar a casa da fazenda, horas mais tarde. Claro que omitiria a noite passada com Marcos.
Estranhou a porteira aberta. Na curva que levava ao casarão, avistou diversos carros estacionados. - “Nossa, vou levar a maior bronca do mundo”.
Quando estacionou, Benedito, o caseiro, acorreu solícito. Ao tentar andar em direção ao casarão, percebeu que ele procurava retê-la.
- “A família não conseguia encontrar a senhora”. – “Calma, Benê, está tudo bem, eu seguro as pontas”.
- “O problema não é com a senhora, dona Cláudia. É ... o seu avô”. - “O que há com vovô?”.
Cautelosamente, Benê respondeu: - “É que ontem ele passou mal, ali pelas duas horas da tarde”. – “Chamaram o Dr. Guido?”. - “Ele não deixou. Disse que quando a senhora chegasse, ele se sentiria melhor. Tentamos ligar para o seu celular, mas ninguém atendia”.Estremeceu, com ódio do Marcos. - “Mas e daí, ele não melhorou?” – “Parecia que sim, estava até alegrinho, mas de madrugada ele piorou e ... não resistiu. O doutor disse que foi um infarto. Morreu às quatro da manhã, chamando pela senhora.

Leia desde o começo acessando o link: Parte I

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Ao poeta

Dirão que já se disse tudo.
Mas isso é absurdo!
Pois se o mundo se transforma a cada momento,
Se a mente se recria a cada pensamento,

Se a vida é puro movimento,
Ninguém jamais tudo dirá, ou fará, ou saberá.

Então, o poeta não pode se omitir.
Sua missão é criar eternamente.
Mesmo que de barro,
Cheio de catarro
Há que se expor abertamente.
E há que transmitir de corpo e mente
Que há perspectiva em cada semente.

Há que alertar contra o perigo e o inimigo
E que descobrir utilidade no monturo,
Por trás do muro;

Há que separar o joio e o trigo
E que pressentir o belo no impuro.
Só não se lhe pode permitir
Alienar-se, com medo, no obscuro.




domingo, 8 de fevereiro de 2009

Bom dia

PARTE I

- “Bom dia, amor!” - “Hum”.
- “Quê que há? Tá com soninho ainda?” - “Tô. Cai fora”.
- “Porque a agressão, meu bem?” - “Ih! Vai começar? Você é igualzinha às outras”.
- “Outras? Você disse que eu era a única”. - “Claro! Agora se manda, tá?”
Magoada e assustada, vestiu-se às pressas e saiu como um touro. “Bem que merecia”, pensou chorando. Afinal, cair na conversa de um conquistador bonitão, narcisista, ela que se julgava tão experiente, era bem feito! Passou pelo porteiro, que lhe lançou um olhar de conhecedor. Que raiva!
Bateu a porta do carro e olhou-se no espelho retrovisor. Esquecera-se de pentear o cabelo. Os olhos vermelhos, com resquícios de pintura, davam-lhe um aspecto tresloucado.
Partiu a toda, as lágrimas rolando. À saída da cidade, um guarda de trânsito fez sinal para que parasse. - “Seus documentos, por favor”.
Olhou-a de lado, enquanto examinava a documentação.
- “Tem certeza de que está se sentindo bem?” - “Sim. Quer dizer, fui ao médico e estou voltando para casa”.
- “Mora fora da cidade? Quer que a escolte?” - “Não obrigada, já estou bem”.
- “Então vá devagar, para evitar um acidente. Boa sorte”. - “O senhor sabe as horas?” - “13h45”.
Deu partida com cuidado. Não se alimentara e estava ligeiramente zonza, mas não queria dar a perceber. Pararia no primeiro bar para um café bem forte.
Conhecia Marcos há já algum tempo. Na verdade não sabia muito a seu respeito. Apenas que ele adorava pregar peças de mau gosto na turma. Ah!, e que a deixara esperando diversas vezes, para reaparecer dias depois, com cara de ofendido, dizendo que ela não o amava, que estava frustrado por suas constantes negativas, que isso de virgindade “já era”. Outras vezes alegava ter estado em provas, estudando adoidado para "o concurso". Nunca explicava qual, dizendo que só saberiam quando fosse nomeado.
A irmã a alertara: - “Esse cara não presta, cai fora”. Odiava essa expressão e jamais a repetiria a alguém. Odiava ainda mais ter que dar razão à irmã. Pensava que ela estivesse com inveja, quando dizia “Não sei o que você vê nele”. Agora percebia que o que mais a atraíra, além de sua presença física, fora o fato de ele proclamar-se feminista ferrenho. “As mulheres precisam se libertar, ter vida própria”, dizia com um sorriso cativante, a incentivá-la. E agora ... ela nem queria acreditar em sua própria ingenuidade.
Pouco depois, já revigorada com o café, lavou o rosto e penteou-se no toalete da lanchonete, olhando de soslaio para o espelho manchado, que deformava ainda mais sua expressão desolada. Resolveu tentar o caminho que Marcos lhe ensinara na véspera, incitando-a a passar a noite com ele. - "Assim você corta caminho e ganha tempo pra enrolar o seu avô", dissera com voz melosa, beijando-a.
Nunca passara a noite fora de casa sem avisar, então, explicaria a ele a situação e pediria que confirmasse que ela passara a noite na fazenda. Sempre tivera uma ligação muito forte com o avô, a ponto de causar ciúmes na ala mais jovem da família. Quando a irmã reclamava, ela dizia: - “É pra compensar, já que você é a queridinha do papai”.
A estrada era de terra, mas o tempo estava bom e ela não se preocupou, apesar da poeira que o carro levantava. Envolvida em tantos pensamentos, lembranças, sentimentos, passou um bom tempo antes que começasse a estranhar a demora para chegar à encruzilhada, na qual, Marcos lhe alertara, deveria entrar à esquerda. Dali, sempre em frente, chegaria ao rio, onde haveria uma ponte, e poderia alcançar a fazenda pelo sul, percorrendo inúmeros quilômetros a menos.
Enfim, a tabuleta ilegível. Manteve-se à esquerda, a estrada e o tempo passando e piorando, em sinistra conspiração. Esquecera-se de abastecer o carro e o marcador de gasolina já apontava bem menos de um quarto de tanque. Pensou em pedir ajuda pelo telefone, mas se deu conta de que o deixara na mesa de cabeceira do hotel. Consolou-se com a frase preferida de sua mãe: “Vai dar tudo certo”.
Bem à frente, avistou um caboclo à beira da estrada. Alcançou-o:
- “Boa tarde”. - “Tarde”.
- “Por favor, eu estou longe do rio?” - “Depende, dona”.
- “Será que eu chego lá antes da noite?” - “Sei não, dona. Vai escurecê mais cedo por causa da chuva que vem aí”.
- “Obrigada”. E arrancou, deixando uma nuvem de poeira na cara do coitado, que soltou uma praga.
- “Desgraçado o Marcos”, pensou novamente, “se eu tivesse feito o caminho de sempre, já teria chegado”.
A água desabou, e nem o farol alto, o limpador de pára-brisa e o desembaçador ajudaram. Foi obrigada a parar por um tempo que lhe pareceu infinito. Aquela maldita mini-saia estava deixando suas pernas geladas. Nunca levava mala, porque na fazenda tinha guarda-roupa completo e apropriado.
Afinal, a chuva amainou e ela recomeçou, derrapando aqui e ali e rezando para não atolar. À beira da estrada, o capim alto visto ao lusco-fusco do entardecer, parecia esconder caras monstruosas, prontas a atacar. - “Oh, imaginação!”. Mas estava realmente com medo, não sabia bem de quê.
De repente, avistou um tênue ponto de luz à distância. - “Graças a Deus”.
Não era tão perto quanto parecera. Quando chegou, acabara de escurecer.
O casebre, mal iluminado, era um misto de bar e moradia de um só cômodo. Um homem de camiseta regata e pele avermelhada abriu a enorme boca desdentada, num sorriso assustador, assim que a viu. Trazia nas mãos um copo, que tinha a certeza não conter água. Atrás de uma espécie de balcão, um caboclo gordo e simpático, foi mais discreto.
- “Perdeu o caminho, dona?” - “Espero que não. Estou procurando a ponte para atravessar o rio”.
- “Tem não. Só um barco de pescadores, mas eles desceram o rio pra mais de três dias e inda num vortaru”.
- “Meu Deus! Eu estou procurando a Fazenda Promissão, que fica do outro lado, já ouviu falar?”
- “Ouvi não. Cê cunhece, Tonho?”
O outro não tirava os olhos de suas pernas.
- “Nem de sonho. Pra mim, a dona pegou é estrada errada”.
- “Existe alguma fazenda por aqui, uma hospedaria, um telefone, qualquer coisa?”
- “Nada, não, dona. Só a aldeia dos pescadores, mas acho que num vão aceitá a senhora lá, não. As muié são muito braba. Só se quisé se arranjá por aqui”. E olhou para as redes imundas dependuradas ao fundo.
Sentiu as pernas tremerem, mas tentou disfarçar. Tinha que raciocinar rápido... Estava praticamente sem gasolina.
- “Quem sabe a Maria Loca?”, lembrou o gordo, “ela é doida por um dinheirinho e tem a casa maió que eu já vi”.
- “Eu, hein!”, resmungou Tonho, “tão falano que a casa é mal-assombrada. Tem até aquela história...”.
Cláudia não o deixou terminar a frase. - “Pra mim está ótimo”, disse apressada. “Onde mora essa dona Maria”?
- “Eu levo a dona inté lá. O Tonho óia aqui pra mim. É um pulinho e eu posso vortá na carroça das entrega. Ela inté vai me agradecê.”
- “Cê num qué que eu vô, Zé?” - “Não, Tonho. Cê fica. Eu vorto logo”.
(continua)*


Para não sobrecarregar a leitura, a PARTE II será postada na próxima semana.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Parto literário

Gemo em meio ao parto
literário, para extrair
a poesia do Abstrato.
Do meu sacrário, a parir
sem sexo de fato.

Não lhe conheço a forma
a cor ou o tamanho
mas antevejo um nexo

a manter o substrato
que informa.

De convulsão em convulsão
vou expulsando a Criação

que lentamente se abre
qual flor nascitura.
Espasmos de literatura.

E depois do nascimento
a dedicação futura
que só a vivência encena:

o tempo do crescimento.
Terá valido a pena?





Ação e Reação


O desenvolvimento da linguagem foi, provavelmente, o grande fator que levou os seres humanos a se diferenciarem das outras espécies animais. Expressando-se inicialmente com poucas palavras, o homem foi, à medida das necessidades sociais, das novas descobertas e invenções, enriquecendo progressivamente seu vocabulário.
A palavra, especialmente a escrita, como toda riqueza e conhecimento humanos, logo passou a ser fonte de poder por parte de alguns reacionários que, arbitrariamente, manipulam a verdade, temerosos de que as transformações sociais – aliás, inevitáveis – possam abalar seu status.
É arquimilenar o ensinamento oriental - experiencialmente vivido por Gandhi e outros grandes mestres -, de que o verdadeiro poder do ser humano não está na reação destruidora, mas no exercício da capacidade, que todos possuímos, de agir conscientemente.
A alegre irreverência do povo brasileiro consolidou esse ensinamento na fórmula “malandro que é bom, não chora, espera a volta”, insinuando na entrelinha que, para superar as agressões, é necessário um certo savoir-faire e atenção às voltas que a vida dá.
Essa velha sabedoria popular me parece importante, mas não suficiente, porque não basta esperar, há que agir perseverantemente, pois, “quem sabe, faz a hora, não espera acontecer”. Esta estrofe, banida da linguagem musical pelos déspotas da ditadura, tornou-se um símbolo bem brasileiro da coragem e criatividade que nos são inatas e da qual não prescindimos, ainda que sob pressão.
Ainda que esses dons sejam gratuitos, é necessário agir para mantê-los, construindo diuturnamente nossa plena liberdade de ser e de viver em comunidade, sem dominantes e dominados, vale dizer, sem sermos manipuladores, nem nos deixar manipular.
Se quisermos realmente viver e legar a nossos filhos esse estado de equilíbrio e compreensão social, será indispensável levantar do sonho utópico de que podemos ficar deitados eterna e comodamente em esplêndido berço e procurar adestrar nossa musculatura intelectual e emocional, tanto quanto exercitamos nossos músculos físicos.

*Publ. in Revista do Ypiranga, nº 114, jan/fev/2002, pág.6.