terça-feira, 31 de março de 2009

Orfandade

Orfã de pais vivos. Televivos.
Barriga cheia de bala,
Nem fala. Cala
E, sem fome, consome

O futebol, o sorvete,
O fantasma, o pivete,
A violência sem clemência,
Drogas: inapetência.

É cultura sem polêmica,
Anêmica. Endêmica.
Educação racionada
Vivência televisada e
Computadorizada.

Mais nada.

Ser e Tempo

Martin Heidegger, filósofo alemão autor do famoso “Ser e Tempo”, dizia que ao nascer, “somos lançados ao mundo”, portando apenas o que ele chamava de “pré-compreensão”.
De alguma forma, esse enfoque corresponde à visão oriental de que todos nascemos com “pré-disposições” ou tendências que podemos aprimorar ou reprimir no decorrer da existência.
Por serem filosóficos, ambos os pontos de vista mantém um enfoque psico-mental da questão, ou seja, preocupam-se com a forma como vamos sentir e compreender, como vamos interagir com o mundo, vida afora.
Por outro lado, a biologia tenta definir nossa herança genética, vale dizer, as características que, transmitidas por nossos ancestrais, foram impressas em nossos gens e nos acompanharão enquanto vivermos, ainda que não se manifestem.
O conjunto dessas características físicas, psíquicas e mentais, forma a nossa bagagem. São as primeiras roupagens que trazemos para nos adaptar a esta nova dimensão da vida: a existência no mundo.
Estas divagações filosóficas me trouxeram à memória a história de um amigo que, embora não falasse inglês, emigrou corajosamente para os Estados Unidos com uma pequena mala de mão e alguns dólares.
O mês era dezembro e o inverno rigoroso. As roupas, tropicais, serviram para os primeiros dias, vestidas umas sobre as outras. Dinheiro acabando, a opção foi um emprego de carregador, cujo primeiro salário “graças a Deus, semanal”, serviu para a compra de dois pares de meias de lã e um bocado de chocolate.
Trabalhando duro, levou longo tempo para juntar o suficiente para a passagem de volta. Ao retornar, confidenciou-me:
“Quando desembarquei naquela terra, tudo era estranho. Me senti como um bebê, entre deslumbrado e apavorado. A bagagem que levei era insuficiente para que eu pudesse progredir sozinho, sem um sorriso de incentivo e um ombro amigo pra chorar.”
Acho que meu amigo tinha razão: afora o leite, o que um bebê mais precisa, ao ser lançado nesta terra estranha, é de calor humano. Disso dependerá seu progresso como Ser. O resto é questão de Tempo.

* Publ. in “Revista do Ypiranga” nº 119, jan/fev/2003, pág.7.

quinta-feira, 26 de março de 2009

SILÊNCIO

Silêncio porque é noite.

E a noite é de Paz. E amor.

Silêncio porque é dia,

E o dia a luz irradia.

Silêncio... Sorria.


Sorria porque é noite.

Sorria porque é dia.

Sorria para o silêncio.

Silêncio... Sabedoria

Sorria.


*Escrito na década de 70, como resposta ao mote/provocação proposto pelo saudoso amigo Oswaldo Rizutti. Traduzido para o inglês, eu soube que teria sido publicado por uma Revista indiana na década de 90, porém, por um "ruído" na comunicação, a edição não me chegou às mãos.
**Publ. na Coluna Feminina ou Feminista, do Jornal de Atibaia, sem. de 8 a 14/03/80, pág.4.
***Publ. no Jornal "O Meirinho em Roteiro", ed. fev/março/1981, pág.7.

Do Purgatório à Transcendência (via Meditação)


Há muitos anos, assediada pela criatividade, mas ainda confinada num labirinto mental que faz “do cotidiano um eterno purgatório”, para usar a expressão do sociólogo Morris Berman, assim concretizei poeticamente meus tormentos:

O BARCO ESTÁ AFUNDANDO
E EU SEQUER SEI NADAR.

Bem mais tarde, “descobri” a meditação e ... aprendi a nadar, embora às vezes passe perto de morrer afogada.
Mas, afinal, o que é meditar? Como já disse algures, conceitos existem às mancheias. Técnicas, ibidem. Ensinam-se procedimentos facilitadores (muitas vezes complicadores) ou indutores de um estado meditativo, cujo conteúdo deverá sempre caber ao praticante, ou será simples manipulação autoritária.
Não há fórmulas que se adaptem ao caminhar, que é essencialmente subjetivo. Não há sequer caminho, dizem os grandes mestres, pois tudo é Ilusão (Maya) desde a manifestação primordial (Trimurti). Há, porém, que trilhá-lo todo, até que se possa apreender a veracidade dessa afirmação, que se assemelha a um koan (proposição aparentemente ilógica utilizada pelo budismo japonês para romper condicionamentos mentais lógico-lineares dos discípulos).
A saída dessas proposições – metafóricas ou não -, em geral é muito clara, quase óbvia, como no caso do nó górdio que, impossível de ser desfeito, sucumbe à simples pressão de uma tesoura. É nossa ansiedade em solucionar racionalmente a questão que se torna um obstáculo à compreensão, ou seja, é nossa cegueira que nos impede de encontrá-la.
Embora avessa a conceitos, tenho adotado, como ponto de partida possível para que se tenha uma noção do que é meditar, uma adaptação da feliz concepção que o terapeuta-escritor Rollo May utilizou para a idéia de liberdade. Ensina ele que a liberdade se encontra no exato instante que medeia o estímulo e a resposta.
É esse, a meu ver, o ponto de mutação, o espaço (de tempo) que possibilita o “salto quântico”, o momento em que se dá o livre-arbítrio e eu posso “me-ditar” a ação autêntica - liberta de injunções externas e dos condicionamentos que levam à resposta automática, inconsciente, reativa -, num auto(re)conhecimento de minhas próprias potencialidades.
Essas pausas de disponibilidade ou momentos de vazio no fluxo da consciência são os “lapsos de transição” de que já nos falava o inefável William James que, há um século, abria caminho para a ampliação do conhecimento sobre a alma humana e para o surgimento das novas disciplinas da consciência.
Deepak Chopra, médico e pensador indiano parece corroborar com James ao afirmar que “antes de a mente adormecer, abre-se um rápido vazio”, assim como “entre cada pensamento existe um lapso de silêncio”. Também valido, em princípio, o ensinamento krishnamurtiano de que a meditação é capacidade cerebral, “do cérebro que se libertou do seu condicionamento e, portanto, está funcionando como um todo”.
Meditar, portanto, é um estar-disponível à inspiração e à transcendência, a qualquer momento e em qualquer lugar, desapegado dos estímulos externos que nos induzem a um permanente estado re-ativo. É ser livre no claustro ou no cárcere, é manter-se íntegro numa cultura fragmentada e fragmentadora.
A meditação pode, indubitavelmente – e o afirmo por experiência própria, a par de incansáveis pesquisas, quer literárias, quer “de campo” -, levar a estados alterados de consciência, entendidos como estados de transcendência, facilitadores do acesso a um nível transcendente da existência. Cabe lembrar que aqui “transcendência” é vista sempre como uma condição que pode levar ao transcendente.
Como afirma o experiente investigador Ken Wilber, a “meditação é, na verdade, um caminho instrumental sustentado de transcendência” (...) “é transformação”. Investigadores ocidentais têm atribuído a esses estados as mais variadas denominações, como “transe místico”, “experiência mística”, “mergulho no vazio”, “estado expandido de consciência”, “estado de iluminação”, mas todos falam do mesmo.
De acordo com o famoso psicólogo Abraham Maslow, nessas “experiências de pico” a autoconsciência se perde, deixando para trás os medos, tensões, dúvidas e fraquezas. Há uma identificação com o Todo, mais familiar aos orientais, que a conhecem como samadhi (hinduismo) ou nirvana (budismo). Essa é a entrada no silêncio da alma.
No meu entender, a grande questão não é chegar a esse(s) momento(s) de hiper-consciência, mas retornar com humildade aos labores e relacionamentos do cotidiano, sem nos perdermos novamente em seus “ruídos” e nas indefectíveis armadilhas do ego.

*Terceiro capítulo da Primeira Parte de meu livro, ainda inédito, intitulado "Micro-ensaio sobre a Consciência".

segunda-feira, 23 de março de 2009

Por que Gandhi hoje?


Mohandas Karanchand Gandhi nasceu numa pequena cidade indiana em 1869, tendo se tornado mundialmente famoso pelo constante e paciente trabalho em prol da liberdade de seu povo, apoiado exclusivamente numa firme e indeclinável ação pacífica.
Embora sua morte haja decorrido há já 50 anos, a praticidade sua proposta é extremamente atual, até porque hoje vivemos num neocolonialismo a que se deu o nome de globalização que, nas palavras de Frei Beto “apenas substituiu as naus pelo capital econômico especulativo”.
O pai de Mohandas era devoto de Vishnu e sua mãe era jainista praticante – uma seita hindu que tem como lema “não causar dano a nenhum ser vivente” - e, como todos sabemos, a formação cultural e religiosa tem muito a ver com o que as pessoas se tornam.
Muitos falam do politeísmo das religiões da Índia. Estou de acordo, porém, com alguns autores - como Marcos Gomes -, que entendem que, ao contrário, o hinduismo é “essencialmente monoteísta”, pois acredita num Deus Absoluto, que é chamado Brahman.
Assim como o dogma cristão da Santíssima Trindade, nos faz crer no Pai, no Filho e no Espírito Santo, a Trimurti hindu é formada por Brahma (o Criador), Vishnu (o Conservador) e Shiva (o Transformador), a tríplice Manifestação de Brahman. Ser devoto de Vishnu, portanto, significa venerar a expressão divina mantenedora do universo.
Alguns pensadores vêm nessa trindade, abstrações filosóficas relacionadas com o passado, o presente e o futuro, ou com a tese, a antítese e a síntese, e outras tríades tradicionais.
Apenas para fins didáticos, mas sem pretender estabelecer qualquer tipo de comparação, poderíamos dizer que, assim como os cristãos veneram a Virgem, os santos, anjos, etc., o panteão hindu se compõe de entidades que são chamadas “deuses”, com “d” minúsculo.
Objetos de veneração por seus seguidores, essas entidades geralmente são consideradas avatares ou “estágios de um mesmo ente”, como é o caso do deus Rama, visto como um dos Avatares de Vishnu, a quem Gandhi aprendeu a orar desde a mais tenra idade.
O Ramanama, que ele praticou durante toda sua vida, significa repetir o nome de Rama, inúmeras vezes, até sentir-se impregnado pelo divino, a forma de oração tipicamente hindu, chamada mantra, uma fórmula que, de tanto ser repetida, vai se instalando em nosso coração e em nossa mente.
A propósito, essa forma mântrica de prece (ou meditação), também era praticada pelos antigos cristãos em comunidades conhecidas como os “Padres do Deserto” e hoje vem sendo revivida e adaptada pelos monges beneditinos da Comunidade Mundial para a Meditação Cristã, como um processo de transformação que nos abre para a compreensão e amizade com o outro – inclusive com outras tradições religiosas.
Essa era também a postura do Mahatma, que orava por hindus, muçulmanos e cristãos, para que fossem pessoas melhores, dentro dos ensinamentos de suas respectivas crenças. Assim, o Sermão da Montanha era por ele considerado um dos grandes textos da humanidade.
E aqui aproveito para fazer uma advertência sobre o risco de utilizarmos repetitivamente a palavra violência, a ponto de permitir que ela se instale em nossos pensamentos e sentimentos, impregnando-nos de temor e ódio e nos neurotizando a ponto de reagirmos assustada ou agressivamente a qualquer gesto, movimento ou aproximação do outro.
Melhor seria substituí-la pela expressão “não-violência”, o famoso Ahimsa (literalmente, não-dano), conceito que Gandhi teve o mérito de aprofundar no sentido religioso, filosófico e político, numa ética total que deveria embasar nossos pensamentos, palavras e ações, em todos os momentos de nossa vida, a ser utilizada persistentemente em todas as situações e em toda parte.
A ética gandhiana é, portanto, uma resistência pacifica (não passiva, como muitos pensam) contra toda forma de injustiça, uma praxis corajosa, que passa, necessariamente, pelo respeito às diferenças, necessidades e direitos do outro e de nós próprios, em suma, pela dignidade dos seres humanos.
Para reverter o processo de violência e exclusão de que estamos saturados, temos que nos reconhecer como co-partícipes de um todo social e planetário que tem na diversidade uma demonstração de sua grande riqueza.
Essa postura diante da vida requer uma prática constante, que começa nas pequenas atitudes diárias, no lar, no trânsito, nas instituições das quais fazemos parte, sejam escolares, esportivas, religiosas ou profissionais, até alcançar toda a estrutura social. Às vezes basta um sorriso, como dizia Madre Tereza de Calcutá, outra grande mestra da humanidade.
O sentido humano com que Gandhi impregnou seus ideais na luta por uma vida mais digna para todos, sem discriminações de qualquer espécie, tem sido fonte de inspiração para os grandes movimentos pacifistas e acrescentou substratos éticos para a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948).
Seus ensinamentos e exemplos podem, portanto, ser considerados paradigmas que, devidamente adaptados, nos auxiliarão a embasar a busca por um mundo melhor.

*Síntese de Ensaio publ. in Rev. Thot nº 79/2003, pág.4/9.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Comemoração

Aos três meses de idade o blog está comemorando a marca de Mil “gols” atingida pelos leitores. Agradeço a todos e a cada um pela(s) visita(s) e os convido a celebrar comigo deixando seus comentários com críticas e sugestões para que possamos aprimorá-lo cada vez mais. OBRIGADA.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Invasão de privacidade

Há algum tempo, um vírus entrou no meu computador – nem imagino como – e encaminhou um e.mail vulgar a todas as pessoas e instituições que faziam parte de minha agenda pessoal, inclusive algumas autoridades com as quais, em algum momento, mantive relações de trabalho.
Não bastassem os vírus, bactérias e que tais, que fazem parte da natureza e invadem nossos corpos quando de alguma forma baixamos a guarda, o ser humano usa sua inteligência para criar outros tantos para invadir nossos relacionamentos, nossa intimidade e de certa forma nossa alma.
Fico pensando sobre o que leva pessoas com uma capacidade técnica tão superior às demais a se comportar de forma tão sem sentido, eles próprios invasores da vida alheia e, portanto, pouco mais (ou menos) que amebas, quando poderiam se dedicar a alguma atividade para melhorar as já tão conturbadas relações humanas.
Se essas mentes privilegiadas ocupassem parte de seu tempo a auxiliar crianças e jovens carentes a entender a importância da informática para a construção de um mundo melhor, colocando suas inteligências a favor da educação e da cultura, talvez descobrissem o inefável prazer da missão cumprida que se revela num simples olhar repleto de gratidão.
Quantos de nós, simples mortais, provavelmente com um Q.I. muito inferior ao desses inconsequentes “cibercriminosos”, se entregam humildemente à difícil tarefa de construir relações mais dignas carregando na bagagem apenas uma pitada de amor. É essa troca de experiências e conhecimento, compaixão e doação que dá algum sentido à complexa condição humana.
Fica a sugestão.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Encontro

Conjunção de diferentes
caminhos palavras idéias
almas corpos olhares
todo encontro é poesia
música do coração.

Primeiro passo compasso
familiar amor amizade
paz prazer alegria
encontro é sempre conquista
mas é também solidão.

Medida do tempo ao vento
primeiro ou último aqui ali
acolá despedidas sofridas
encontro é pura emoção
sofrida contida ou não.


Acaso ou necessidade
ternura ou excitação
esperança caridade
encontro é transformação
carregada de saudade.



*Poema coletivo compilado por Suzete Carvalho das anotações dos participantes do 1º Sarau Lítero-Musical promovido em 11
/03/09 pela Diretoria Cultural do Clube Atlético Ypiranga.

terça-feira, 10 de março de 2009

Complexo de Culpa

PARTE II

A modernidade acrescentou um bom número de novos motivos para perpetuar nosso sentimento antológico de culpa. A revolução sem precedentes nos costumes, em que pese haver trazido uma renovação nos valores, não nos preparou para enfrentar as questões práticas delas decorrentes.
Assim é que a emancipação feminina, se por um lado trouxe novas oportunidades à mulher, como a realização profissional, por outro ampliou seu espectro de culpas. Neste caso, por ver diminuída a sua disponibilidade para cuidar dos interesses da família e, principalmente, por não poder acompanhar de perto o desenvolvimento dos filhos, sente-se entre a cruz e a espada.
Afastados do cenário doméstico grande parte do dia e, às vezes, até à noite, marido e mulher buscam compensar a culpa detonada pelas longas ausências do lar, tornando-se permissivos com os filhos o que lhes acarreta nova dose de culpabilidade.
Bem a propósito, a Dra. Ana Aurélia Di Bella Napolitano, especializada em Medicina Familiar, propõe uma ação educacional no sentido de substituir a malfadada “culpa”, pela expressão “responsabilidade dividida”, desvinculando-a definitivamente de sua dolorosa acepção cultural.
Essa proposta vai ao encontro da teoria da complexidade, que propugna por uma mudança no modelo mental racional que adotamos, o qual, não levando em conta a rede na qual estamos todos inseridos, determina nossos condicionamentos e expressões por leis causais implacáveis.
As mulheres, principalmente, assoberbadas pelo ônus cultural que lhes impôs responsabilidades exclusivas na criação e educação dos filhos e nos cuidados com o lar, enfrentam o grande dilema de conciliar a carreira com o papel de mãe e esposa, o que não lhes permite desfrutar sem culpa as eventuais gratificações profissionais.
Em contrapartida, os homens se sentem angustiados diante da necessidade de se adaptar às novas realidades cotidianas, para as quais não foram preparados emocionalmente. Assim, o marido culpa-se por não ser mais o grande provedor; culpa a esposa por dedicar-se à carreira, em detrimento do lar; enfim, culpa-se por culpá-la.
O fato é que homens e mulheres não foram educados para a “responsabilidade dividida” a que se refere a Dra. Ana Aurélia. Não compreenderam, ambos, assim como a sociedade pós-moderna em geral, que numa sociedade em mudança, todos temos que nos adaptar às novas realidades, despindo-nos dos modelos pré-moldados de comportamento.
A crise decorrente deveria ser encarada como uma oportunidade de aprimoramento social, de aprendermos a nos compreender mutuamente e de nos descondicionarmos dos rígidos papéis sócio-familiares tradicionalmente impostos a homens e mulheres, que a todos limita e infelicita.
Mas não há como nos desvencilharmos desse ônus cultural, enquanto não aprendermos a superar a questão da culpa original, mantida por um modelo de pensamento linear, patriarcal, fragmentador e excludente.
Não basta repensar o modelo, há que colocar em prática os novos paradigmas que subjazem à crise da modernidade e um dos mais importantes é a recolocação da culpa em seu devido lugar. Há que retirar o status de virtualidade permanente que a civilização lhe ofereceu como cadeira cativa.
A culpa está assentada num trono arquetípico, do qual nos dirige tiranicamente, apossando-se de nossa impotente personalidade. Dentre seus escudeiros mais impiedosos, destaca-se o patriarcalismo que, impondo papéis rígidos e diferenciados entre homens e mulheres, a todos subjuga e desnorteia.
Assim, repensar a culpa implica, a priori, repensar nosso modelo mental, questionando as fórmulas prontas que nos têm sido impostas há séculos e que não se adequam à complexidade da realidade pós-moderna. Implica também recolocá-la em seus devidos parâmetros, permitindo que ocupe apenas o estrito lugar de reguladora moral em situações concretas de culpabilidade, erros que devem ser reconhecidos, até para que não se repitam.
Repensar a culpa, portanto, não significa reprimir o sentimento, pois assim o estaríamos reforçando, mas, ao contrário, procurar manter um diálogo franco e realista conosco mesmos, sobre seu cabimento diante das circunstâncias que a originaram.
Estabelecida a procedência do sentimento de culpa, a saída ética e racional é procurar recompor a situação com perseverança e determinação, porém, na medida de nossas possibilidades, sem nos perdermos em atitudes neuróticas ou pretensões onipotentes.
Essas são as bases de um arrependimento honesto, que busca uma reparação eficaz e coerente com a realidade, seja no pedido sincero de perdão ou no reconhecimento público da culpabilidade quando outra pessoa houver sido responsabilizada por nossos erros, seja na satisfação material como suporte da perda ou dano que possamos haver causado.
É importante que saibamos que nem todas as pessoas estão preparadas para perdoar, especialmente após enfrentarem alguma perda importante. Exigir o perdão ou pensar que dele não se é merecedor, são maneiras tão despropositadas de enfrentar a culpa, quanto projetá-la ou negar-se a repará-la.
Perdoar é des/culpar, eximir da culpa, e somente a própria consciência tem esse poder. Portanto, é no auto-perdão que se encontra a efetiva possibilidade de cura.
Mas saber desculpar-se perante o outro é uma forma de demonstrar arrependimento, necessária para aliviar o sofrimento de quem se sentiu injustiçado e, consequentemente, é uma forma de tranquilizar nossa própria consciência culpada e prepará-la para o auto-perdão e a cura.
O processo, muitas vezes, é lento e exige ajuda especializada, mas embora difícil, não é irremediável. Solucionar conflitos internos é uma questão de discernimento, boa vontade e perseverança e não condiz com vitimização e comodismo.
Mesmo se considerarmos que a culpa é um problema arquetípico, profundamente enraizado em nossa cultura, nossa potencialidade para a transcendência e a libertação também o é.
A impermanência é a lei da vida e, portanto, queiramos ou não, acabaremos por nos libertar da culpa, seja ela real ou imaginária. Nossa escolha se resume ao processo, que pode ser rápido ou lento, com maior ou menor dose de sofrimento, pois quanto mais nos dispusermos a mudar, mais rápida e menos dolorosamente se dará a mudança.
Se, ao contrário, nos entregarmos ao processo de vitimização, estaremos prolongando as dores de nossa alma, num martírio inglório e desnecessário que acabará por desqualificar uma parte preciosa dessa incrível experiência que é viver.

Ensaios da palestrante sobre temas correlatos às “Dores da Alma”:
Submissão – in THOT nº 72, Ed.Palas Athena, p. 69/75;
Violência e Cidadania: Um Diálogo Impossível – in THOT nº 76, p.37/42;
Ressentimento – in THOT nº 77, p. 44/52.

Leia a primeira parte: Parte I

sábado, 7 de março de 2009

Dia Internacional de Quem?

Presenteados ou emprestados por amigos, este ano me chegaram às mãos alguns livros ambientados em diferentes sociedades, épocas e contextos, nos quais sobressai a questão recorrente do autoritarismo e da discriminação, mas, principalmente a ultrajante condição da mulher no tempo e no espaço.
Ainda que, em princípio, sejam obras de ficção, seus autores – um uruguaio, um norte-americano, uma chilena e um afegão – se baseiam na experiência e na pesquisa histórica para a construção de ambientes e relacionamentos cujos personagens mais sofridos são, invariavelmente, do sexo feminino.
Latino-americanas, italianas, indianas, afegãs, essas mulheres “imaginárias” carregam solitariamente o ônus da maternidade, o estigma da violência e hipocrisia de um mundo patriarcal, reforçado pela ontológica ignorância e pelo preconceito contra os pobres, dentre os quais a maior parte se insere.
Que dizer,então, das chinesas que durante séculos foram submetidas à tormentosa atrofia dos pés (e almas) sob a desumana desculpa da harmonia estética; das “bruxas” da Idade Média, sadicamente condenadas à fogueira; das “românticas” odaliscas enclausuradas em haréns à disposição de seus ‘senhores’; das escravas do Brasil-Colônia sistematicamente violentadas e açoitadas; ou das centenas de milhares de africanas secularmente submetidas a brutais ablações, para mero deleite masculino? Seriam também produtos da imaginação dos historiadores?
Aqui e agora a situação não é tão melhor assim, em que pese o fato de algumas de nós termos granjeado algum respeito ou posição, em geral por (muito) esforço próprio. A violência doméstica, o tráfico de escravas, a prostituição forçada, a dupla jornada de trabalho, os salários sub-avaliados, a mulher-objeto que não se percebe manipulada, as eternas piadas estereotipadas, entre tantas outras formas de submissão feminina, ainda são realidades incontestes.
Somos gratas, sim, às celebrações do Dia da Mulher, mas as dispensaríamos de bom grado por um pouco mais de equanimidade nos restantes 364 dias de cada ano.


* A quem possa interessar, os livros a que me refiro são: Mulheres, crônicas de Eduardo Galeano; A Conspiração Franciscana de John Sack; A Soma dos Dias de Isabel Allende e A Cidade do Sol, de Khaled Hosseini.

terça-feira, 3 de março de 2009

A Luta da Mulher contra a Violência

Comemorações como o Dia Internacional da Mulher, me soam como uma condescendência um tanto hipócrita com grupos considerados minoritários. Afinal, o que significa a existência de um dia dedicado à nossa luta, senão a confirmação da dolorosa realidade de estarmos inseridas numa cultura fundada basicamente no patriarcalismo? Alguém já viu um ‘dia’ dedicado ao homem?
O fato é que nossa herança cultural greco-romana não apenas negou, sistematicamente, cidadania às mulheres, como a relegou a um papel subalterno, no qual a violência real ou simbólica sempre se revelou onipresente.
Não obstante, porém, o sistemático condicionamento a que nossos cérebros têm sido tradicionalmente submetidos pelo mundo masculino, nós, mulheres temos, sim, conquistado alguns significativos progressos, ao lado dos portadores de deficiência, dos negros, dos homossexuais, e outras tantas chamadas “minorias” que começam a vislumbrar uma tendência à igualdade (meramente formal, ainda), mais por contingência econômica - já que vivemos num mundo de Mercado -, do que por conscientização igualitária.
Mas o senso comum ainda alimenta preconceitos em ditados populares do tipo “Em briga de marido e mulher, não se põe a colher”, que subestima a violência doméstica ou em piadas de humor no mínimo duvidoso, que nos desqualificam como seres pensantes e deliciam os cérebros e egos dos menos competentes dentre os representantes dos machos da espécie humana, que se iludem com devaneios de superioridade de gênero e grau.
Tão sofredores quanto as mulheres, esses seres atormentados submetem-se à tortura de ter que demonstrar aptidões que nem sempre possuem, mas que lhes foram impostas pelo racionalismo, herança cultural que nos condiciona a agir sob a égide das estereotipias. Pesa-lhes a responsabilidade de terem que provar serem sempre competentes, provedores do lar, mantenedores da “honra” (palavra cuja ambiguidade mereceria, por si só, uma palestra) e outros baluartes da alegada supremacia masculina, fundada na força física.
Assim é que todos nós, homens e mulheres, nos tornamos vítimas do mito da superioridade do (auto-proclamado) sexo forte, ao qual nos vergamos submissos, sem perceber a violência simbólica contida nas pretensas verdades que nos têm sido incutidas há milênios e que só aproveitam aos poderosos.
A manipulação daqueles que venderiam a própria alma visando a manutenção do status no panteão masculino, leva não somente à bipolarização de direitos e deveres entre os sexos, mas também à fragmentação social geradora de mais e mais exclusões. Assim, as chamadas minorias, na verdade compostas pela imensa maioria dos homens e mulheres, são subjugadas intelectual e moralmente pelos detentores da verdade (e do dinheiro) e transformadas num imenso contingente de deficientes cívicos.
A insegurança e o medo acabam por contribuir decisivamente para a fragilização do eu individual e coletivo, selando a hegemonia do autoritarismo - contrapartida da submissão. Reconhecida a fragilidade, e isto se aplica principalmente à questão feminina, emergem carências e se acentua o medo da perda de eventuais e até supostos "bens maiores".
Geralmente supervalorizados por ingenuidade ou medo da liberdade, esses bens tanto podem ser representados pela prole, quanto por um falso status, metaforizado, por exemplo, na "rainha do lar". Ao medo da perda, pode juntar-se ainda a também ilusória segurança de viver sob as asas protetoras de um "pai" - representado pelo Estado, o patrão ou o marido todo-poderoso -, que teria o condão de nos isentar de responsabilidades.
O temor infantil da rejeição paterna renasce e se apresenta como insuportável a um ego fragmentado pela introjeção da culpa, seja individual ou social, formando um quadro protelatório de decisões, cada vez mais propício à instalação do conformismo e da mesmice. Krishnamurti nos ensina que é dessa dependência medrosa que nascem todos os nossos problemas, pois, onde houver medo sempre haverá ansiedade, ódio, ciúme, posse e dominação.
Em outras palavras, o medo é sempre gerador de violência, cuja banalização nos relacionamentos íntimos e/ou na convivência familiar, manipulada de forma estereotipada, aumenta e radicaliza o preconceito, deteriora a auto-estima e realça o dualismo vítima/carrasco. Cria-se aí a possibilidade da vítima, prevalecendo-se da situação, lançar um forte apelo emocional ao sentimento de compaixão dos que compartilham o seu entorno, os quais ingenuamente acabam por perpetuar a dualidade, agora na forma protegido/protetor.
Eventualmente, mulheres que adotam o papel de vítimas se comprazem na chantagem emocional de filhos, amigos, compadres, vizinhos compadecidos ou mesmo de membros de incautas organizações assistenciais que, ávidos por diminuir carências, acreditam cumprir sua missão alimentando a dependência infantil e ociosa dessas sofridas, imaturas e inconsequentes almas, que por sua vez se tornam algozes de seus bem intencionados protetores, inaugurando um novo círculo vicioso.
As partes envolvidas se esquecem que o discernimento é um pressuposto indispensável para o cultivo e aprimoramento de sentimentos nobres como o amor e a compaixão, cuja existência só faz sentido no exercício da solidariedade responsável e transformadora, caso contrário, eles se anularão no perverso jogo de poder que rege as relações de autoritarismo.
Outras vezes, na busca de uma saída "honrosa" para a situação, o ego (nossa instância relacional), enseja a adoção de mecanismos de defesa reveladores de uma violência contida que reflete o cinismo vigente. Mas a humildade, como virtude, é consagradora da alma e não combina com o servilismo medroso e hipócrita de quem se inclina diante de outrem com o coração magoado ou manchado de ódio.
A falsa harmonia exterior da razão cínica pode tornar-se insustentável a ponto de inviabilizar todo diálogo - pressuposto básico do conviver -, levando, em momentos de crise, a explosões de violência irracional por uma ou ambas as partes envolvidas na relação de dominação.
Muitas, dentre nós, passaram a vida preenchendo as expectativas da sociedade, dos pais, do marido e dos filhos, sendo cobradas e até agredidas quando não as preenchiam totalmente. Quem preencherá nossos sonhos, nossos desejos, nossas carências?
Em suma, acredito que o trabalho de todos que estão envolvidos com a luta pela não-violência contra a mulher, passa necessariamente pela conscientização de que o problema é muito mais abrangente, pois está enraizado, no mínimo, em arcaicas questões culturais.
A meu ver, tão importante quanto resolver situações graves e específicas, que emergem diuturnamente, será desenvolver um trabalho paralelo de reconquista da auto-estima, estimulando a ideia de que a dignidade é tão importante quanto a própria sobrevivência. Estamos o tempo todo fazendo escolhas e, se nem sempre podemos escolher o que fazer, haverá sempre a possibilidade de escolher como fazer para minimizar o sofrimento.
Urge clamar por políticas públicas efetivas para preservar a dignidade e a integridade da mulher, como ser humano completo que é, cuja realização não pode mais estar ligada exclusivamente ao papel de objeto, consubstanciado na esposa subserviente, dona de casa prestimosa e mãe dedicada, que lhe foi destinado.
Já é hora de abandonar a vitimização e dizer um basta ao mero paternalismo que corrompe nossas mentes e nossos egos, transformando-nos em cidadãs capengas, alijadas de direitos humanos básicos e inalienáveis como a liberdade, o respeito e a dignidade.
Vamos exercer de fato e com a eficiência com que cuidamos de nossos lares, os direitos que nos são constitucionalmente assegurados, especialmente o de liberdade de expressão, como arma potente nessa luta tantas vezes inglória. Lutar pela não-violência é não compactuar com a vilania, utilizando de todos os meios pacíficos na solução dos conflitos sem aguardar passivamente que as coisas aconteçam, como ensinava Gandhi.
Temos que nos posicionar desde o início de cada relacionamento, impondo-nos como seres humanos completos e não admitindo concessões sequer ao primeiro ato de agressão ou indignidade. Perdoar sim, mas não permitir jamais que uma única violência se repita é a única forma possível de nos libertar e romper com essa saga que já nos acompanhou por tempo demais.
Sabemos que esses problemas são dificílimos e muito complexos e, até por isso, temos que direcionar nosso combate às causas e não apenas às conseqüências, como estratégia para que consigamos, no mínimo, selar um armistício, um pacto de não-violência e de cooperação mútua, nesta Guerra que é de todos nós.
É imperativo, portanto, que as mulheres se façam ouvir, não com lamúrias que banalizam a questão, mas com a autoridade de quem sabe que tem muito a oferecer a uma sociedade cuja crise talvez se deva, em parte, exatamente à ausência da participação feminina.


* Edição de pronunciamento feito pela autora em 10/10/2000, em Mesa Redonda realizada pela Escola de Educação e Unidade da Mulher, na Sala de Cultura Urusvati.

Dia da Mulher


Até 1964 o Código Civil Brasileiro classificava as mulheres, os índios, os menores de até dezesseis anos e os loucos de todo gênero como semi-capazes para os atos da vida civil. Significa dizer que perante a lei tínhamos os mesmos direitos que nossos filhos, os índios e os doentes mentais.
Os índios, explicavam os entendidos, não estavam adaptados à vida em nossa sociedade; os ‘loucos’ não podiam ser levados a sério e os menores não podiam se responsabilizar por dívidas, até porque ainda não tinham juízo. As mulheres, bem, as mulheres eram “rainhas”, as rainhas do lar, não precisavam se preocupar com ‘problemas de homem’, tinham que ser protegidas (de quem ou de que, nunca entendi).
Éramos professoras, secretárias, enfermeiras e outras profissões ditas ‘femininas’, ou seja, aquelas que não eram muito bem pagas, nem conferiam qualquer espécie de poder.
Trabalhávamos, sim, e como! Mas não podíamos, diante da lei, dispor de nosso próprio dinheiro como bem nos aprouvesse, ou seja, sem o consentimento do papai ou do maridinho. Afinal, era a lei, feita pelos homens. Dura lei.
A década de 60 representou uma ‘virada’ na ordem das coisas, dentre as quais a situação civil da mulher. Mas o Brasil entrou numa era de repressão e a liberdade de todos, homens e mulheres, passou a sofrer restrições. Paradoxalmente, os cursos universitários proliferaram e enquanto a questão feminina decantava, as mulheres aproveitaram para se aperfeiçoar técnica e culturalmente para enfrentar os novos tempos.
Anos mais tarde, surgiu a ‘moda’ de se institucionalizar homenagens: Dia das Mães, dos Pais, da Criança, dos Namorados, etc. Paraíso dos consumidores. Tudo é desculpa para repararmos materialmente nossas desatenções. Um bom presente, e aplacamos nossa consciência pesada. Dia do Índio, Dia da Mulher, Dia da Consciência Negra e ... pronto, estão resolvidos os preconceitos! Dia do Bombeiro, Dia dos Professores, Dia dos Servidores Públicos e a Administração está redimida de seus baixos salários.
Quando eu estava terminando esta crônica, um amigo querido telefonou e quando lhe disse que estava escrevendo sobre o Dia da Mulher solidarizou-se com a homenagem, afirmando que as mulheres merecem todo seu respeito e “devem ser protegidas”. Bem a propósito a observação de meu genro, que tem alma feminina: “Protegidas ou controladas?”. Voltamos, pois, à estaca zero. Coincidências significativas a nos alertar que não bastam leis e homenagens (muito justas, aliás), para mudar a mentalidade patriarcal.

* Publ. in Revista do Ypiranga nº142, fev/2008, pág. 5.



segunda-feira, 2 de março de 2009

Complexo de culpa

PARTE I *

Desde a mais tenra idade somos bombardeados com normas familiares, religiosas e sociais – o mais das vezes inibidoras -, que vamos internalizando enquanto construímos a nossa personalidade, sem que nos demos conta de que os valores e sentimentos, que acreditamos nossos, nos foram impostos culturalmente.
Dessa forma, o “espontâneo” sentimento de culpa é mais acentuado em determinados grupos, variando no tempo e espaço, o que lhe retira, a priori, o caráter imanente que algumas tradições lhe impingiram.
O fato é que as religiões ocidentais, a par de pregarem amor e caridade, contribuindo para a paz e a elevação moral da humanidade, são, paradoxalmente, responsáveis pela maior parte das inibições de ordem moral, que nos levam a um permanente estado de guerra contra todos, inclusive nós próprios.
Mas o fenômeno da culpa não se restringe à influência religiosa, já que os tentáculos da culpa se entrelaçam em verdadeira trama bio-psico-sócio-cultural, pois embora a vivência se dê na consciência do sujeito, sua gênese tem causas externas e acaba repercutindo socialmente já que estamos sempre em relação uns com os outros.
Daí decorre que a culpa, como tantos outros sentimentos perversos, efervesce num círculo vicioso, que se auto-alimenta, agravado pela rigidez do superego pessoal ou coletivo e pelos mecanismos psíquicos de defesa. Assim, de uma forma ou de outra, ninguém escapa de algum sentimento de culpa, a menos que seja portador de uma personalidade psicopática.
Dentro de limites normais e desde que assentada sobre a realidade, a culpa é necessária para possibilitar o convívio social, já que tem o condão de despertar esse bicho-da-consciência que é o remorso e, de alguma forma, impulsiona a caridade. Nesse sentido, poder-se-ia falar em culpa normal ou natural e culpa anormal ou exacerbada, embora (já que nada é isto “ou” aquilo, mas isto “e” aquilo), haja uma zona cinzenta entre essas formas.
Os sentimentos de culpa saudável são proporcionais e adequados ao ato praticado, levando ao remorso e ao arrependimento, que servem para evitar sua repetição. Quando, porém, ultrapassam os limites da razoabilidade, tornando-se fonte de angústias, a culpa e o remorso podem ser devastadores.
Trata-se do chamado complexo de culpa, problema tormentoso porque decorrente de uma questão culturalmente arraigada. Esse processo de absorção individual dos condicionamentos culturais, (imprinting) é como uma tatuagem indelével, da qual procuramos nos livrar esfregando inutilmente a pele: maior o esforço, maior a irritação decorrente.
A questão da culpa é, portanto, uma questão muito complexa. Ao estudá-la, a psicanálise envereda pelas discrepâncias entre o Super Eu e o Eu; o direito enfoca a relação crime/castigo, ou seja, a transgressão culpável da norma legal; e a filosofia reflete sobre a gênese e as consequencias da culpabilidade humana.
Cabe à psicanálise trazer uma das mais importantes contribuições para a elucidação dessa e tantas outras questões sobre nossas emoções e sentimentos que se revelam nas fobias, neuroses e todas as paixões doentias que abraçamos ou nos abraçam, em decorrência de nossas limitações intrínsecas ou culturais.
São limitações geradoras de ansiedade e angústia existenciais que, agravadas pelo medo das conseqüências, se revelam numa sintomatologia dolorosa do corpo e da alma e nas dificuldades de interação com nossos semelhantes, cujas dores não conseguimos reconhecer, pois sequer as reconhecemos em nós mesmos.
Inconscientemente, na ânsia de sermos compreendidos e aceitos, nós nos revelamos aos outros por palavras, atos (geralmente falhos) e em atitudes posturais e gestuais. É a voz da consciência (superego) que se revela, implorando punição. A transgressão, clamando por retaliação.
Essa consciência culposa ou “angústia de consciência”, pode ainda trazer consigo transtornos funcionais como perda ou excesso de apetite, insônia, pesadelos e taquicardia, paradoxalmente causas e sintomatologia da depressão que em geral acompanha o sentimento de culpa.
É a “necessidade de adoecer” ou “consciência neurótica”, que nos atormenta de forma desproporcional ao ato praticado, ou mesmo sem haver motivos plausíveis de culpabilidade. Como diziam nossos avós, “quando não as temos, as fazemos”. Sentimo-nos culpados por recônditos desejos insatisfeitos, ou mesmo por nossas meras intenções e, então, nossa consciência moral se encarrega de nos punir exemplarmente.
As sutilezas mentais, muitas vezes, fazem com que acrescentemos, sem nos darmos conta, uma pitada de tempero a essa “infelicidade interior contínua”, quando “armamos” inconscientemente situações culposas, tornando-as tragicômicas. Judith Viorst, no livro Perdas Necessárias, descreve poeticamente a saga dos amantes imaginários Ellie e Marwin, assomados pela culpa inconsciente, que tomo a liberdade de transcrever parcialmente:

“Ellie e Marwin
Têm se encontrado secretamente duas vezes por semana
Durante os últimos seis meses
Mas não consumaram sua paixão
Porque
Embora ambos concordem
Que a felicidade conjugal
Não só é pouco realista como também
Irrelevante,
Ela começou a sofrer de enxaquecas e
Ele começou a ter pontadas agudas
No peito, e
Ela ficou com impetigem e
Ele teve conjuntivite.
(...)
Ellie e Marwin
Desejam fazer amor durante a tarde
Num motel
Mas até agora só tomaram uma grande quantidade
De café
Porque
Ele está convencido de que seu telefone tem escuta e
Ela está convencida de que um homem com jaqueta de couro a está
seguindo e
Ele diz, e se o motel se incendiar
Ela diz, e se ela falar alto em sonho e
Ela acha que o marido está agindo com hostilidade suspeita e
Ele acha que a mulher está agindo com bondade suspeita e
Ele está sempre ferindo o rosto com a lâmina de fio duplo e
Ela está sempre prendendo a mão na porta do carro assim
Embora ambos concordem
Que o sentimento de culpa não é só neurótico mas também
Obsoleto
Concordaram também em
Desistir
Dos encontros secretos”.

*O artigo se baseia em uma palestra proferida em um curso sobre as Dores da Alma.

A Parte II será postada na próxima semana.