terça-feira, 3 de março de 2009

A Luta da Mulher contra a Violência

Comemorações como o Dia Internacional da Mulher, me soam como uma condescendência um tanto hipócrita com grupos considerados minoritários. Afinal, o que significa a existência de um dia dedicado à nossa luta, senão a confirmação da dolorosa realidade de estarmos inseridas numa cultura fundada basicamente no patriarcalismo? Alguém já viu um ‘dia’ dedicado ao homem?
O fato é que nossa herança cultural greco-romana não apenas negou, sistematicamente, cidadania às mulheres, como a relegou a um papel subalterno, no qual a violência real ou simbólica sempre se revelou onipresente.
Não obstante, porém, o sistemático condicionamento a que nossos cérebros têm sido tradicionalmente submetidos pelo mundo masculino, nós, mulheres temos, sim, conquistado alguns significativos progressos, ao lado dos portadores de deficiência, dos negros, dos homossexuais, e outras tantas chamadas “minorias” que começam a vislumbrar uma tendência à igualdade (meramente formal, ainda), mais por contingência econômica - já que vivemos num mundo de Mercado -, do que por conscientização igualitária.
Mas o senso comum ainda alimenta preconceitos em ditados populares do tipo “Em briga de marido e mulher, não se põe a colher”, que subestima a violência doméstica ou em piadas de humor no mínimo duvidoso, que nos desqualificam como seres pensantes e deliciam os cérebros e egos dos menos competentes dentre os representantes dos machos da espécie humana, que se iludem com devaneios de superioridade de gênero e grau.
Tão sofredores quanto as mulheres, esses seres atormentados submetem-se à tortura de ter que demonstrar aptidões que nem sempre possuem, mas que lhes foram impostas pelo racionalismo, herança cultural que nos condiciona a agir sob a égide das estereotipias. Pesa-lhes a responsabilidade de terem que provar serem sempre competentes, provedores do lar, mantenedores da “honra” (palavra cuja ambiguidade mereceria, por si só, uma palestra) e outros baluartes da alegada supremacia masculina, fundada na força física.
Assim é que todos nós, homens e mulheres, nos tornamos vítimas do mito da superioridade do (auto-proclamado) sexo forte, ao qual nos vergamos submissos, sem perceber a violência simbólica contida nas pretensas verdades que nos têm sido incutidas há milênios e que só aproveitam aos poderosos.
A manipulação daqueles que venderiam a própria alma visando a manutenção do status no panteão masculino, leva não somente à bipolarização de direitos e deveres entre os sexos, mas também à fragmentação social geradora de mais e mais exclusões. Assim, as chamadas minorias, na verdade compostas pela imensa maioria dos homens e mulheres, são subjugadas intelectual e moralmente pelos detentores da verdade (e do dinheiro) e transformadas num imenso contingente de deficientes cívicos.
A insegurança e o medo acabam por contribuir decisivamente para a fragilização do eu individual e coletivo, selando a hegemonia do autoritarismo - contrapartida da submissão. Reconhecida a fragilidade, e isto se aplica principalmente à questão feminina, emergem carências e se acentua o medo da perda de eventuais e até supostos "bens maiores".
Geralmente supervalorizados por ingenuidade ou medo da liberdade, esses bens tanto podem ser representados pela prole, quanto por um falso status, metaforizado, por exemplo, na "rainha do lar". Ao medo da perda, pode juntar-se ainda a também ilusória segurança de viver sob as asas protetoras de um "pai" - representado pelo Estado, o patrão ou o marido todo-poderoso -, que teria o condão de nos isentar de responsabilidades.
O temor infantil da rejeição paterna renasce e se apresenta como insuportável a um ego fragmentado pela introjeção da culpa, seja individual ou social, formando um quadro protelatório de decisões, cada vez mais propício à instalação do conformismo e da mesmice. Krishnamurti nos ensina que é dessa dependência medrosa que nascem todos os nossos problemas, pois, onde houver medo sempre haverá ansiedade, ódio, ciúme, posse e dominação.
Em outras palavras, o medo é sempre gerador de violência, cuja banalização nos relacionamentos íntimos e/ou na convivência familiar, manipulada de forma estereotipada, aumenta e radicaliza o preconceito, deteriora a auto-estima e realça o dualismo vítima/carrasco. Cria-se aí a possibilidade da vítima, prevalecendo-se da situação, lançar um forte apelo emocional ao sentimento de compaixão dos que compartilham o seu entorno, os quais ingenuamente acabam por perpetuar a dualidade, agora na forma protegido/protetor.
Eventualmente, mulheres que adotam o papel de vítimas se comprazem na chantagem emocional de filhos, amigos, compadres, vizinhos compadecidos ou mesmo de membros de incautas organizações assistenciais que, ávidos por diminuir carências, acreditam cumprir sua missão alimentando a dependência infantil e ociosa dessas sofridas, imaturas e inconsequentes almas, que por sua vez se tornam algozes de seus bem intencionados protetores, inaugurando um novo círculo vicioso.
As partes envolvidas se esquecem que o discernimento é um pressuposto indispensável para o cultivo e aprimoramento de sentimentos nobres como o amor e a compaixão, cuja existência só faz sentido no exercício da solidariedade responsável e transformadora, caso contrário, eles se anularão no perverso jogo de poder que rege as relações de autoritarismo.
Outras vezes, na busca de uma saída "honrosa" para a situação, o ego (nossa instância relacional), enseja a adoção de mecanismos de defesa reveladores de uma violência contida que reflete o cinismo vigente. Mas a humildade, como virtude, é consagradora da alma e não combina com o servilismo medroso e hipócrita de quem se inclina diante de outrem com o coração magoado ou manchado de ódio.
A falsa harmonia exterior da razão cínica pode tornar-se insustentável a ponto de inviabilizar todo diálogo - pressuposto básico do conviver -, levando, em momentos de crise, a explosões de violência irracional por uma ou ambas as partes envolvidas na relação de dominação.
Muitas, dentre nós, passaram a vida preenchendo as expectativas da sociedade, dos pais, do marido e dos filhos, sendo cobradas e até agredidas quando não as preenchiam totalmente. Quem preencherá nossos sonhos, nossos desejos, nossas carências?
Em suma, acredito que o trabalho de todos que estão envolvidos com a luta pela não-violência contra a mulher, passa necessariamente pela conscientização de que o problema é muito mais abrangente, pois está enraizado, no mínimo, em arcaicas questões culturais.
A meu ver, tão importante quanto resolver situações graves e específicas, que emergem diuturnamente, será desenvolver um trabalho paralelo de reconquista da auto-estima, estimulando a ideia de que a dignidade é tão importante quanto a própria sobrevivência. Estamos o tempo todo fazendo escolhas e, se nem sempre podemos escolher o que fazer, haverá sempre a possibilidade de escolher como fazer para minimizar o sofrimento.
Urge clamar por políticas públicas efetivas para preservar a dignidade e a integridade da mulher, como ser humano completo que é, cuja realização não pode mais estar ligada exclusivamente ao papel de objeto, consubstanciado na esposa subserviente, dona de casa prestimosa e mãe dedicada, que lhe foi destinado.
Já é hora de abandonar a vitimização e dizer um basta ao mero paternalismo que corrompe nossas mentes e nossos egos, transformando-nos em cidadãs capengas, alijadas de direitos humanos básicos e inalienáveis como a liberdade, o respeito e a dignidade.
Vamos exercer de fato e com a eficiência com que cuidamos de nossos lares, os direitos que nos são constitucionalmente assegurados, especialmente o de liberdade de expressão, como arma potente nessa luta tantas vezes inglória. Lutar pela não-violência é não compactuar com a vilania, utilizando de todos os meios pacíficos na solução dos conflitos sem aguardar passivamente que as coisas aconteçam, como ensinava Gandhi.
Temos que nos posicionar desde o início de cada relacionamento, impondo-nos como seres humanos completos e não admitindo concessões sequer ao primeiro ato de agressão ou indignidade. Perdoar sim, mas não permitir jamais que uma única violência se repita é a única forma possível de nos libertar e romper com essa saga que já nos acompanhou por tempo demais.
Sabemos que esses problemas são dificílimos e muito complexos e, até por isso, temos que direcionar nosso combate às causas e não apenas às conseqüências, como estratégia para que consigamos, no mínimo, selar um armistício, um pacto de não-violência e de cooperação mútua, nesta Guerra que é de todos nós.
É imperativo, portanto, que as mulheres se façam ouvir, não com lamúrias que banalizam a questão, mas com a autoridade de quem sabe que tem muito a oferecer a uma sociedade cuja crise talvez se deva, em parte, exatamente à ausência da participação feminina.


* Edição de pronunciamento feito pela autora em 10/10/2000, em Mesa Redonda realizada pela Escola de Educação e Unidade da Mulher, na Sala de Cultura Urusvati.

4 comentários:

Anônimo disse...

ja linkei seu blog no desmemorias

www.desmemoria.zip.net

um abraço

diniz

Anônimo disse...

Ei melhor mãe do mundooooooooo!!!!!!!!
Muitos anos ainda p/ nós. Te amo.

Suzete Carvalho disse...

Olá, Diniz
Também já linkei seu desmemórias. Agora precisamos pensar numa forma mais efetiva de divulgação para que o conteúdo cultural de nosso trabalho não se perca em blá-blá-blás, não acha? Deixei um comentário numa de suas poesias. Já leu? Abraço e até breve.

Suzete Carvalho disse...

Dani
Muitos anos ainda pra vocês, que têm a vida pela frente. Passo o cetro de melhor mãe do mundo para você(o de melhor filha já é seu). Ah, e agora eu te desafio a postar um comentário realmente crítico sobre o conteúdo do meu trabalho. Também te amo.