quinta-feira, 30 de abril de 2009

UTI e a Síndrome de Estocolmo

Esta manhã, acordei com a sensação de que havia voltado do hospital com a “Síndrome de Estocolmo” e fiquei intrigada. Para quem não lembra, a síndrome está relacionada, entre outros “sintomas”, às tentativas de a vítima superestimar, em geral como mecanismo de defesa e devido ao estresse físico e emocional a que está submetida, os eventuais gestos de gentileza de seus sequestradores.
Até agora, jamais havia pensado numa UTI como uma espécie de “cativeiro”, em que o paciente dá entrada, até certo ponto por moto próprio, e se torna refém de um grupo organizado, devendo se submeter às ordens emanadas por todos os membros da equipe.
Tendo passado, há poucos dias, pela experiência da “terapia intensiva” – sempre um tanto traumática –, e entusiasmada pela rápida recuperação e pelo carinho recebido de alguns dos profissionais que me atenderam, meu primeiro impulso foi postar um depoimento no blog, retratando o mais fielmente possível a epopéia médico-hospitalar vivida.
Hoje, ainda sob impressão matutina e já passados cinco dias da “Alta Médica”, voltei a pensar no assunto com mais ponderação, como, aliás, sempre faço após a ocorrência de fatos marcantes nos quais tenha estado envolvida. Essa postura de observadora, me isenta de distorções emocionais, eis que despida, neste caso, não mais das roupas (que me foram “confiscadas” à entrada da UTI), mas da excitação que caracteriza o comportamento de alguém recém saído de situações dolorosas.
Após refletir durante todo o dia sobre o assunto e movida também pelos comentários de leitores e amigos, inclusive da área médica, percebo que a questão é muito mais complexa. O fato é que minhas preocupações, como sempre, transcendem essa situação específica, conforme declarei em resposta a um comentário deixado no blog, na matéria intitulada “Epopéia médico-hospitalar”.
Por ora, remeto-os à matéria citada. Voltarei ao assunto.

Momentos

Num momento a inspiração noutro a apatia mental a gargalhar da luta do intelecto para prosseguir e criar contestar clamar declamar aclamar reclamar coração a chorar eterno recomeçar.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Epopéia médico-hospitalar

Fala-se muito da questão da Saúde no Brasil, sempre enfocando seu lado negativo, o que acaba “respingando” nos profissionais da área, cuja grande maioria é, como no geral, em todas as outras categorias, formada por pessoas éticas, competentes e bem intencionadas que acabam servindo como bodes expiatórios das mazelas institucionais.
No afã de criticar, nestes tempos de caça às bruxas, nos esquecemos de computar o quanto de paciência, abnegação e altruísmo é despendido por aqueles que se dedicam à recuperação de pacientes, tantas vezes despreparados para colaborar com a equipe de atendimento, seja por estarem fragilizados fisicamente, seja por ignorância ou mesmo pela expectativa de um mau atendimento, fundada no excesso de informações depreciativas.
Acabo de passar por uma importante experiência de vida relacionada a esse assunto, que por uma questão de justiça me vejo na obrigação de descrever. Dia 23 de abril, lá pelas onze horas da noite, comecei a sentir pontadas no tórax que pareciam irradiar-se para a mandíbula. Como tenho alguns problemas cardíacos, meu marido e meu genro me levaram ao Pronto Socorro do Hospital Oswaldo Cruz, onde faço acompanhamento clínico.
O médico de plantão, Dr. João Henrique Narciso, ligou imediatamente para minha médica, Dra. Lúcia Leal Guerra, que o instruiu sobre meus problemas específicos. Antes da meia-noite eu estava monitorada e devidamente medicada. Os enfermeiros Marcelo e Sandra se revezavam a todo momento com João Henrique, a me examinar e fazer a leitura do monitor, sempre sorridentes e bem-humorados. Às três horas da manhã fui avisada de que, como minha pressão arterial e batimentos cardíacos continuavam instáveis, eu precisaria ser removida para a UTI. A notícia me foi dada com um beijo na cabeça (pelo médico) e um convite inusitado: “quando sarar venha nos visitar”.
A seguir, um “susto”: não havia vaga na UTI do Hospital, mas, mesmo que houvesse, teríamos que depositar quarenta mil reais, pois o Convênio não autorizava internação cardiológica naquela Unidade. Em compensação, a recepção do PS entrou em contato na mesma hora com o serviço de urgência do Convênio, que providenciou rapidamente uma ambulância/resgate para me transportar.
Antes das quatro horas, já estava devidamente instalada e monitorada na UTI do Hospital de Cardiologia TotalCor, onde vivi horas surpreendentes em vários sentidos. Logo ao dar entrada, fui recebida por um enfermeiro que se apresentou: “Meu nome é Santhiago e eu estou aqui para atendê-la. Pode me chamar a qualquer momento e não se preocupe, vai dar tudo certo”.
Feliz ou infelizmente, o box em que fui colocada ficava ao lado de uma sala para “casos difíceis”, onde uma senhora portuguesa, que além de problemas cardíacos sofria do Mal de Altzheimer, gritava a plenos pulmões: “Sucóooooooorro, me tirem daqui. Padre Mãrceeeeelo, me ajuuuude” e outras frases tragi-cômicas (algumas impublicáveis). Enfermeiros e médicos se revezavam tentando acalmá-la, mas não descuidavam de mim.
Em certo momento, quando tentava colocar um cateter em minha mão, Santhiago desabafou: “Incrível que justamente quando um paciente tranqüilo como a senhora está precisando descansar um pouco, alguém tenha que fazer esse barulho”. Nesse momento, dei um pequeno gemido, pois as veias de minha mão (e eu própria) já estamos fragilizadas pela idade. Nova surpresa: Santhiago beijou meus dedos , dizendo: “Eu machuquei a senhora? Perdão. Daria tudo pra não fazê-la sofrer”. Angina abrandada e pressão arterial estabilizada, tentei dormir, mas não consegui.
Pela manhã, tentei negociar com o médico minha alta definitiva. Ouvi: "Você teve angina e está numa UTI. Não posso deixá-la ir diretamente para casa, mas se continuar reagindo bem, à tarde vou liberá-la para o quarto, para ficar um pouco em observação. Em seguida, recebi a visita de um nutricionista: “O que a senhora gostaria de comer”? Por incrível que pareça, durante toda a minha (curta, é verdade) permanência no Hospital, todas as refeições foram servidas exclusivamente com os pratos de minha preferência. Confesso que minhas necessidades “gastronômicas” são absolutamente frugais, em que pese o paradoxo, mesmo assim fiquei surpresa com a atenção.
A seguir, outra surpresa: Nilson, o enfermeiro que substituíra Santhiago na troca de plantão, perguntou: “Gostaria de uma massagem nas costas, pra diminuir o trauma da cama”? Suas mãos foram delicadas e o gel que utilizou exalava um aroma suave e relaxante. Ao sair, disse: “Quer tomar um suco ou uma água? Prefere a luz acesa ou apagada? Agora tente descansar um pouco, que eu soube que essa noite foi difícil”. A propósito, dona Isabel recomeçara a gritar por Padre Marcelo, Padre Alberto e toda a Cúria cujos membros ela parecia conhecer intimamente. Por seu lado, as máquinas que nos monitoravam, se revezaram noite e dia com a senhora portuguesa, em seu intermitente (e cansativo) dim-dom.
À tarde, visita da fisioterapeuta, delicada e sorridente: “Quer tentar uns movimentos pra diminuir as sequelas do leito prolongado?” Aceitei e me senti recuperada. Nati (para os íntimos), a enfermeira que substituiu Nilson, percebendo minha disposição, segredou: “Ouvi o médico dizendo que vai lhe dar alta para o quarto. Quer tomar um banho aqui ou prefere tomar do seu jeito, no quarto”? Como preferisse do meu jeito, sugeriu: “Então, quer dar uma voltinha? (vislumbrei uma cadeira de rodas atrás da cortina) e lá fomos nós. No caminho, um encontro casual com o médico: “Olá, vou lhe dar alta da UTI, está bem”?
Nati não me largou mais, salvo para atender algum grito mais assustador de dona Isabel (a que todos acorriam), até me “entregar” à equipe de enfermagem do quarto. Ao chegarmos, me apresentou: “Esta é a Dona Suzete. Ela é muito tranqüila”. Um dos enfermeiros levantou, todo sorridente: “Que bom, seja bem-vinda. Qualquer coisa é só chamar”. E me senti bem-vinda mesmo, porque o atendimento continuou carinhoso e competente. Antes de se retirar, Nati segurou minhas mãos e desejou boa sorte. Deu dois passos, voltou e me abraçou.
Mais tarde, minha filha, “companheirona”, chegou para “dormir” comigo. No dia seguinte, recebi alta, não sem que o médico, Dr. Daniel Janczuk, se desculpasse pela demora: “Se eu soubesse que você estava louca para ir embora, teria passado primeiro aqui. Desculpe pela demora. Vou fazer o relatório rapidinho”. Como nem tudo é perfeito, tive que ficar para o almoço, pois o “sistema” ficou fora do ar algum tempo. Dr. Daniel, que ainda estava no andar, brincou com meu marido: “Eu fiz a minha parte”. Todos fizeram o melhor possível.
Antes de voltar para casa, passei pela cabeleireira, que ninguém é de ferro. Em seguida, fui consolar minha mãe e, depois, meus netos, que estavam ansiosos. Foram quarenta e oito horas de vivência intensa, em que não faltaram situações dolorosas, nem cômicas e, muito menos, carinho e atenção.
Claro que me deparei com um ou dois médicos ou atendentes mais arrogantes, mas esqueci seus nomes. Talvez não tenham escolhido a profissão correta, pois não dignificam a categoria. As acomodações também não foram especialmente confortáveis ou luxuosas, mas parabenizo a Amil Saúde – Administradora do Hospital, pelo investimento no humano e agradeço a Deus pelo privilégio de estar em condições de agradecer. Quanto à minha família, sou suspeita demais para falar e espero que me perdoem o susto. Vou tentar me cuidar melhor.

São Paulo, 27 de abril de 2009

domingo, 26 de abril de 2009

48 horas

23 de abril dor no peito PS perguntas injeção na barriga surpresa não doeu Monitor “tá caindo” perguntas “tá instável” interna 40.000? surpresa beijo na cabeça “Adeus volte pra me ver” maca Resgate/UTI maca monitor perguntas soro barulho sono cateter “doeu”? surpresa beijo na mão “perdão” troca de plantão barulho perguntas picada sono surpresa massaginha nas costas? luz barulho sono maca quarto! perguntas picada sono... 25 de abril “que aconteceu, vó”? “nada, meu amor, vovó está de volta”.

*Expressões pinçadas de crônica/depoimento a serem publicados. Tudo tão recente ainda...sono...

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Burocracia

Diz-se da burocracia,
que é própria de funcionários,
mas em toda e qualquer parte
a alienação é geral. Total.
E os barnabés, qual otários
sofrem na pele a cobrança. Herança
do pecado original.

Na verdade o que existe
- e ao particular se aplica -,
esta história especifica:
você chega e se explica,
qualifica, identifica.
E então tem o ensejo
de apreciar um bocejo
estúpido. Irracional.

É uma grande displicência
própria do mundo atual,
não só do funcionalismo.
É da infeliz maioria
que faz o seu dia-a-dia
de ausência. De apatia. Egoismo
sem clemência. Dormência,
mais própria de animal.

*Escrita a pedido de servidores da Justiça do Trabalho da 2ª Região, de cuja Associação a autora foi Presidente.
**Publicada no Jornal "O Meirinho em Roteiro", ed. fev/março/1981, pág. 7.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Grandes Personalidades Femininas

George Sand, em torno da qual giravam:
Chopin, Musset, Vigny, etc.

Amandine Aurore Lucie Dupin, para se realizar profissionalmente, viu-se obrigada a adotar o masculino pseudônimo de “George Sand”. Talvez isso sirva de consolo às feministas mais radicais, pois, em “apenas” pouco mais de dois séculos já conseguimos assinar nossas próprias obras sem necessidade de recorrer a tais subterfúgios. Afinal, temos até representante na Academia Brasileira de Letras.
Mas, perdoem a divagação – não fora a coluna escrita por uma mulher e isso não aconteceria -, e voltemos à homenageada-póstuma da semana, Baroneza De Duvant, que teve a ousadia, em 1831, de proclamar a própria independência. Escrevendo por vocação mas, tendo que manter-se para sobreviver, utilizou artimanhas como vestir-se, denominar-se e portar-se como homem.
Na verdade, Aurore teve a oportunidade, já na pré-adolescência, de, vivendo no campo, encontrar à sua disposição vastíssima biblioteca, que devorou, sofrendo influência de personalidades como Byron, Rousseau (o maravilhoso Jean Jacques, sobre cuja obra ainda terei oportunidade de discorrer) Chateaubriand e outros, que exacerbaram sua vocação para a literatura.
Eclética, George Sand foi teatróloga, crítica literária e jornalista, celebrizando-se, entretanto, como romancista. Publicou Indiana em 1832, seguido de Valentine, Lélia, Jacques, Mauprat. Chegou ao ápice com Histoire de Ma Vie, onde destaca a importância de sua vivência e de seus casos sentimentais com gênios como Musset e Chopin.
Não prego a volubilidade para que a genialidade literária aflore, nem a dissolubilidade do casamento para a realização profissional, mas, especialmente considerando que ela estava sob a influência do Romantismo, “o mal do século”, não posso deixar de admirar a coragem dessa mulher que, numa sociedade preconceituosa, tolhida pelo casamento, pôs em jogo a própria honra para sua realização pessoal (se é que a conseguiu) e profissional (amplamente celebrizada).

*Publicada na Coluna Feminina ou Feminista, do Jornal de Atibaia, ed.semanal de 15 a 21 de março de 1980.


FILOSOFANDO

“Se alguém quiser adquirir Sabedoria, não será através do Trabalho, mas sim do ócio” – PLATÃO


Evidentemente, não se poderá interpretar Platão ipsis litteris. Usando a palavra ócio, parece mais lógico tenha o fecundo autor pretendido referir-se ao conhecimento que advém da arguta observação, quer quando em trabalho mecânico, quer em repouso físico.
Quem sabe estaria o discípulo de Sócrates aludindo à meditação, termo hoje tão em voga, mas que a raros é dado compreender e, menos ainda, pôr em prática. Meditação que, por transcendental, ultrapassaria as barreiras tempo-espaço, permitindo conhecimentos milenares, com um mínimo de tempo cronológico dedicado.
Quem sabe, ainda, a sabedoria dos Grandes Mestres se deva a uma boa dose de divagação. Se o próprio Einstein afirmou que a imaginação é mais importante do que o conhecimento! E, como dar asas à imaginação? Divagando...
Mas, não se preocupem, isto não é uma tentativa reacionária de desmerecer o trabalho. Ao contrário, é uma tese: Conviver com ele. Mesmo, ou principalmente, quando automático e cansativo, como dirigir em horas de rush, ou aguardar em intermináveis tardes chuvosas, que os senhores executados se dignem a abrir suas portas. Enquanto isso, abramos as “nossas portas”, as “portas da percepção”. Observemos, meditemos, divaguemos.
E da tese (trabalho) à antítese (ócio), surgirá a síntese, quiçá o equilíbrio entre a sabedoria (não mais o capital!) e o trabalho, pois afinal, como disse São Paulo “Quem não trabalha não come”.
Não deixemos ao espírito a frustração de não haver participado da evolução de nossa era, que não é só cerebrina no sentido da técnica e da ciência, mas também espiritual, a era da Paz e do Amor.
Mas, se não pudermos ou não soubermos, não importa. Trabalhemos. E, como repouso do espírito, sempre que possível, divaguemos...

*Publ. in “O Meirinho em Roteiro” (Jornal dos Servidores da Justiça do Trabalho da 2ª Região), jul/agosto/1981, pág.8.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Tolerância

O Passaporte da convivência

O ser humano, desde a mais tenra idade,é educado para viver em sociedade, caso contrário não conseguiria sequer sobreviver. E essa educação baseia-se em limites que lhe vão sendo impostos progressivamente: isto pode, aquilo, não; isto é bonito, aquilo é feio; isto é bom, aquilo é ruim.
Com o tempo acriança vai estabelecendo barreiras em seu comportamento, que amplia ao território social, aceitando os iguais e rejeitando tudo que for diferente. Assimila preconceitos, forma hábitos. E atira no inconsciente tudo que não reconhece em si mesmo como “bom” e “bonito”. Cresce sem aprender a conviver com sua própria “sombra”, que passa a projetar no(s) outro(s). E se torna intolerante porque não suporta ver-se a si mesmo como é, inteiro, nem tão bom, nem tão ruim.
Os grupos sociais repetem o esquema: fecham-se aos que têm outra religião, outro time, outra origem, outra cor, outro status. A intolerância passa a ser exercitada em todos os níveis, do familiar ao internacional e, como uma bola de neve, vai perigosamente aumentando...
Assim, a falta de compreensão entre os homens chegou a tal ponto que a própria ONU, preocupando-se com o problema, elegeu 1995 como o “Ano Internacional da Tolerância”.
Gostaríamos de celebrar o evento, pois sem tolerância não há paz nem liberdade. E o exercício dessa tolerância deve começar conosco mesmos, com nossos defeitos e limites, pois só nos aceitando como somos, estaremos livres para tolerar o barulho das crianças, a euforia dos jovens, as manias dos velhinhos, a torcida adversária, a carência dos fracos, a prepotência dos poderosos, etc...
De alguma maneira, durante a vida, apresentamos todas essas facetas e muitas mais, que só nós conhecemos, mas tentamos ignorar projetando-as nos outros. Toleremos para ser tolerados. Tolerar é amar a vida como ela é, é bem viver, é trabalhar para a paz entre os homens, é ter um passaporte para a convivência.

* Publ. in Jornal do Ypiranga, nº 70, junho/1995.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

O Direito e a Moral

Poder-se-ia dizer que a era presente, altamente tecnológica, também avança juridicamente a passos largos? Será que o homem tem aliado seu avanço científico a uma evolução do Direito que o faça não só compreender como também merecer as grandes e seguidas descobertas atuais?
Terá, por outro lado, a ciência jurídica, mantido estreitos laços com a MORAL ou dela se terá distanciado, valorizando a máquina em detrimento daquele que a criou? De fato, o que se tem notado é que o Direito também evoluciona rapidamente, porém, sem tempo para aquelas deliciosas divagações filosóficas que eternizaram os povos da antiguidade.
Talvez a história tenha, nas últimas décadas, não obstante a criação de grandes Organizações Internacionais, tratado o problema jurídico de forma estritamente científica, a exemplo do que tem feito em todos os outros campos, relegando para segundo plano a Filosofia Jurídica e o Direito Natural.
É bem verdade que o progresso tem determinado o nascimento diuturno de novas situações que exigem soluções rápidas e objetivas. Mas, não deixemos que esse estado de coisas nos envolva a ponto de nos afastar de nossos mais recônditos princípios. Não nos esqueçamos de que somos seres pensantes, não só atuantes.
Temperemos cada uma de nossas atitudes com uma pitada de amor, a fim de que possamos realmente saboreá-las. Humanizemos toda essa técnica, toda essa ciência em vez de nos deixarmos materializar com elas. Filosofemos um pouquinho, só um pouquinho, nas horas vagas e descobriremos que ainda já flores nos jardins e sorrisos nos lábios das crianças.
Voltaremos então a dar valor à moral e ao jus naturalismo, a fazê-los conviver com nossa técnica. Quem sabe, assim, possamos responder afirmativamente aquelas indagações; posamos merecer esta evolução sem precedentes, conscientizando-nos, acima de tudo, de que somos imortais.

*Publ. em agosto de 1975, no Jornal “O Arauto do Pentágono” (Jornal com sede em São Caetano, que circulou no ABC de 1992 a 1990), pág. 6.
**Recém-saída da Faculdade, sob o signo da ditadura e com um bebê de um ano, eu também ensaiava meus primeiros passos no campo literário e filosófico-jurídico.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

A TRÍADE

Considerações sobre o FGTS

Em brilhante Conferência realizada em 30 de março último, no auditório do Centro de Convenções Rebouças, por ocasião do I Congresso Brasileiro de Direito Individual do Trabalho, patrocinado pela Editora LTr, o renomado Professor Octávio Bueno Magano retomou a tese publicada recentemente no Jornal “Folha de São Paulo” que, em síntese, se traduz na proposta de abolição – com retorno ao setor privado, da arquibilionária receita estatal respectiva – do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço.
Para impulsionar seu irrepreensível raciocínio lógico, o erudito conferencista tomou como ponto de partida a idéia de que o ser humano tem irresistível atração pela tríade, tendo apresentado, para demonstrá-la, exemplos clássicos retirados dos mais diversos campos da cultura ocidental – da Trindade Divina às proposições silogísticas -, até chegar à tripartite representação – de trabalhadores, empregados e Governo -, junto ao Conselho Curador do FGTS.
Parece-me, data-venia, de clareza meridiana que num mundo condicionado pela tridimensionalidade, em que o homem não consegue transcender a visão compartimentada em largura, comprimento e altura, torna-se explicável sua atração pela tríade, que, aliás, vem ampliar a ultrapassada concepção maniqueísta, fixada em “inconciliáveis” opostos como “bem e mal”, “certo e errado”, “verdadeiro ou falso”, aos quais poderíamos acrescentar também “empregado e empregador” como partícipes exclusivos das relações jurídico-trabalhistas, em presumida igualdade de condições, como pretendem os defensores da flexibilização irrestrita no Direito do Trabalho.
Se a visão tridimensionalista já é insuficiente para dirimir as novas questões postas diuturnamente na dinâmica da sociedade e do direito, gerando algumas tríades monstruosas, antevejo um perigoso retrocesso ao bidimensionalismo, onde se situa o mundo das sombras (ou meras aparências) ou o das formigas, incansáveis trabalhadoras que só se apercebem da largura e do comprimento, sem vislumbrar a dimensão da altura, à qual o homo sapiens já conseguiu se elevar.
Digressões filosóficas à parte, a reformulação do Direito do Trabalho é, sem dúvida, uma das questões jurídicas mais prementes neste país paradoxal, onde a riqueza se centraliza nas mãos de um número ínfimo de privilegiados, em detrimento de uma imensa população de “sobreviventes” formados não apenas pelos desempregados ou subempragados na economia informal, mas basicamente por dezenas de milhões de trabalhadores que, embora empregados – e, portanto, sob a égide da legislação trabalhista -, são mal remunerados e mal representados, mesmo porque o sindicalismo do país é reconhecidamente fruto do corporativismo fascista, mero instrumento, ainda, salvo raras e honrosas exceções, da hegemonia econômica e estatal.
Hoje, fala-se em flexibilização (tendência atual na Europa) como se fora uma panacéia que viria solucionar todos os problemas jurídico-trabalhistas do Brasil, sem se atentar para o fato de que a raiz desses problemas não está tanto numa legislação protetiva – ainda que um tanto caótica – dos trabalhadores, mas nas condições quase sub-humanas de vida, num país que se aproxima de uma indianização (só em São Paulo as estatísticas revelam um contingente de quase três milhões de pessoas literalmente “nas ruas”, em estado de absoluta miséria) e que pretende, um tanto oniricamente, fazer parte do Primeiro Mundo.
Refiro-me, aqui, ao risco de nos apegarmos a uma “nova” concepção liberalista – herança perigosa da “era Collor”, cujas raízes doentes insistem em se fixar em nosso solo fértil – e, em nome de uma modernidade tão utópica quanto o foram os ideais franceses da famosa tríade liberté, égalité, fraternité -, acabarmos por destruir os poucos direitos trabalhistas (tão longe de equilibrar as relações capital-trabalho!), lenta e dolorosamente conquistados.
É ocaso do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – “propriedade do trabalhador e um dos elementos de proteção social”, conforme citação do Professor Wagner Balera, também palestrista no referido evento da LTr -, instituto cujo nascimento como regime de “opção” à estabilidade foi um grande engodo engendrado pelo Governo Revolucionário em 1966, ora elevado a direito dos trabalhadores (não mais como um regime de falsa opção) pela Constituição de 1988, em seu artigo 7º, inciso III. Sua extinção não se justifica pela má administração dos vultosos recursos auferidos pelo Estado, pois esse raciocínio poderia levar-nos a teratológica inversão de valores. Ineficiente não é o instituto, é a instituição. Por que, então, não repensá-la, atendendo ao anseio popular de uma nova “Ética na Política”?
Por outro lado, se a função primordial do Fundo é de cunho social e seus recursos não são propriedade do trabalhador, devendo ser aplicados primacialmente em programas de habitação popular, infra-estrutura e assistência social, porque revertê-los ao setor privado?
Enfim, ainda que se substituísse a possibilidade de levantamento dos depósitos do Fundo, na hipótese de dispensa arbitrária, por uma indenização, não seria temerário frustrar a expectativa do empregado em vias de se aposentar, de receber o que considera “seu depósito” do FGTS, já que a conta é vinculada e até impenhorável?
Voltando, por final, à idéia de tríade, o ilustre advogado Júlio César do Prado Leite, componente da Mesa que discutiu a “Flexibilização no Direito do Trabalho” no mencionado Congresso, lembrou ao público as três verdades fundamentais da cristandade: “fé, esperança e caridade”, dizendo que “desta última já perdemos o sentido”. Restam, portanto, somente a fé e a esperança, e é desta que ainda vive o trabalhador.

São Paulo, 2 de abril de 1993.

*Publicado pela Editora LTr, no Suplemento Trabalhista 055/93.
**Indicado como Referência Bibliográfica no Curso de Direito do Trabalho II, da Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus.



Novos tempos

Aproveitando o feriado prolongado para reorganizar as indefectíveis pastas de papéis e recortes de jornal (acredito que uma mania de todo escritor da velha guarda), acabei encontrando antigos manuscritos e publicações em prosa e verso – das décadas de 60 a 90 (!) – dos quais, confesso, já nem me lembrava.
Considerando que alguns dos temas continuam atuais, já que os novos paradigmas levam décadas para serem superados ou mesmo alcançados em sua plenitude – como, entre outras, as questões ecológicas – e, que alguns de nossos condicionamentos estão culturalmente arraigados há séculos - como as inúmeras e complexas questões que levam à ausência de cidadania -, resolvi postar alguns daqueles escritos que ainda me parecem oportunos.
Alguns desses assuntos, percebo agora, não foram tratados com a profundidade que mereciam, o que ponho à conta não somente de minha imaturidade intelectual, mas também devido ao clima de apreensão que, nos anos de chumbo, abafava nossos arroubos de liberdade, ainda que meramente intelectuais e artísticos.
Por tudo isso, convido os leitores a deixarem seus comentários críticos e depoimentos sobre as matérias com as quais tenham alguma vivência, para que possamos, juntos, repensar esses temas à luz dos novos tempos.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Jamais

Sei que jamais matarei
a fome do meu irmão.


Sei que jamais matarei
o preconceito malsão.

Sei que jamais matarei
a humana sede de saber.


Sei que jamais matarei
meu anseio de escrever.

Sei também que nada sei
e que jamais saberei,

Mas sei que SOU
Ou que, ao menos, HEI DE SER.


*Publ. in "O Meirinho em Roteiro" (Jornal dos Servidores da Justiça do Trabalho da 2ª Região), edição de jul/agosto/1981, pág.10.
**Publ. sob o título O QUE SEI, na página LITERATURA do Jornal de Piracicaba, de 21/03/1982 (pág.14).

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Saudosismo

Onde o velho savoir-faire?
Onde o sábio savoir-vivre?
No ar, num perene affaire.
Ninguém mais tem tempo livre!

*Escrito como reflexão irônica, há mais de duas décadas, quando amigos e colegas solicitados a participar de um trabalho comunitário, se escusaram alegando falta de tempo. Em tempos de ditadura, o senso comum sobre sabedoria era: "Cuide de sua própria vida".

Em tempo: Não sou saudosista.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

O(s) Olho(s) da Inveja

Não vemos que não vemos

De alguma maneira, a inveja tem sido tradicionalmente associada ao olhar. Etimologicamente derivado do latim invidia, (do radical ved, olhar) o termo está relacionado com invidere, significando olhar enviesado, de soslaio, de onde provém “mau-olhado”, “olho gordo”. Daí a tradução mais corrente do verbo invideo, na expressão de Cícero: “causar infortúnio pelo mau-olhado”.
Quem olha, procura ver. E, dependendo de como olhamos, vemos o que queremos (o que nos interessa) ou o que podemos ver através de nossos filtros naturais (neuro-fisiológicos), artificiais (condicionamentos), materiais (objetos físicos) ou mesmo os ideológico-sociais que atuam coletivamente, de modo a massificar o modo de sentir e pensar de uma sociedade.
Para alguns, sentir inveja é “não querer ver”. É ignorância (da realidade), ausência de discernimento, alienação, inconsciência, enquanto para outros, chega mesmo a ser uma “deformação” da personalidade ou do caráter, como declarou Saliba, um grande admirador de Gandhi. Talvez por isso os gurus nos orientem a “Ter olhos de ver”.
Assim, ética e discernimento se impõem, inclusive ao olhar. Nilton Bonder, na sua Cabala da Inveja, dedica todo um item ao tema, sob o título Sabendo Enxergar, onde propõe que procuremos enxergar em função de nós mesmos, para só então enxergar os outros em relação a nós. Segundo o rabino, a ira dificulta nossa capacidade de ver e respirar, por isso nossos olhos se contraem e nossas narinas se expandem, como se necessitássemos do ar para poder enxergar de maneira mais clara.
Humberto Maturana e Francisco Varela propõem uma experiência visual que demonstra o fenômeno do chamado “ponto cego”, baseados no fato de que há uma zona da retina, de onde sai o nervo ótico, que não tem sensibilidade à luz. Por isso, os objetos colocados sob essa região específica não são visíveis, mas, “o fascinante”, concluem os autores, é que “não vemos que não vemos”.
E assim é. Nossas lentes de contato com a realidade (bio-psicológicas), se não forem corretamente prescritas e ajustadas, tanto nos podem cegar, quanto nos tornar estrábicos e desviar nosso foco de atenção para os pontos fracos daqueles a quem invejamos. Mahatma Gandhi nos fornece parâmetros para ajustá-las e nos orienta a prescrever, para nos vermos a nós próprios como somos, as mesmas lentes de aumento que usamos para julgar os outros.
Por outro lado, sabemos todos que, dependendo do ângulo em que nos posicionarmos, nossa visão dos mesmos objetos será diferente, donde se conclui a relatividade de nossa percepção do mundo. Para que pudéssemos ver o outro lado da montanha, teríamos que fazer uso do “olhar curvo” de que fala Evandro de Castro Sanguinetto.[1]
“Mas, o que é ver?”[2] - pergunta Marilena Chauí, enveredando por uma hermenêutica filosófico-religiosa fundada em raízes etimológicas que vão do indo-europeu ao grego e ao latim: “Ver (weid) é olhar, seja para ter ou para tomar conhecimento” (raiz indo-européia). O verbo grego eidô também exprime “esse laço entre ver e conhecer”, assim como o latim, vídeo e viso, donde visita (ver freqüentemente).
Ensina a autora ainda que, na versão latina da Bíblia, visita significa “manifestação de Deus ao homem” para exame de seus atos. Ser por Ele visitado ou ‘Estar sob a visita de Deus’ é ter-Lhe os olhos sobre nós. “Ele, que, em sua onisciência, tem o poder para dizer: provideo (ver de antemão) e por isso é providentia que nos protege contra um outro olhar, o improvisus da caprichosa Fortuna. Se aceitamos Sua visita, também há de proteger-nos do mau olhado, invideo (invejar)”.
[1] Thot (publ. Transdisciplinar da Ed. Palas Athena) n º 77, pág.4/8.
[2] “Janela da Alma, Espelho do Mundo”, in O Olhar, pág.35.

*Trecho do capítulo V da Parte I de meu livro (inédito) "O Olhar da Caprichosa", um Ensaio Transdisciplinar sobre Inveja, Preconceito e questões correlatas.

domingo, 5 de abril de 2009

Busca de sentido

Viver vivendo por viver à-toa não paga a pena de morrer morrendo por morrer à-toa não paga a pena de viver.




*Postado como mote/prólogo ao diálogo.
A arte a serviço do debate.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

LIBERDADE

Uma das questões primordiais para a humanidade é a da liberdade, a cujo respeito muito se tem escrito e em nome da qual tanto se tem lutado. Mas...será que a liberdade realmente existe? Quais serão seus limites? Será que todos – homens e mulheres, negros e brancos – conseguem exercer sua liberdade da mesma forma?
Afinal, o que vem a ser liberdade?
Bem, aqui poderíamos citar inúmeros conceitos de juristas, psicólogos, filósofos,sociólogos, todos voltados para a questão do ser, mas cada um olhando sob sua própria perspectiva. E este é o grande problema, porque embora a experiência da liberdade seja pessoal, ela tem sempre que ser abordada em sua relação com a totalidade.
O que quero dizer é que nossa liberdade cotidiana (familiar, cívica, social) encontra seus limites na liberdade do ‘outro’ e, se a desrespeitarmos, teremos que arcar com a punição decorrente, podendo até perder nossa própria liberdade de ir-e-vir (sendo impedidos de frequentar determinados lugares – como a sede social de um clube – ou até mesmo sendo encarcerados).
Mas a verdadeira liberdade não é apenas física, transcende os aspectos do dia-a-dia, é algo mais profundo, que encontra limites em nós mesmos (nossa fé, nossa moral, nossos condicionamentos), pois está relacionada com o nosso interior. Isto porque se nem sempre podemos escolher o “que” fazer, que depende de elementos externos (a lei, a sociedade, a organização familiar), podemos escolher “como” fazer, que é uma questão interna, nossa conosco mesmos.
Esse “como” abre um grande leque para a consciência humana, porque mesmo que não possamos escolher as contingências da vida, podemos escolher como vivê-las, podemos escolher o que pensamos e o que sentimos. E ainda que estivéssemos condenados à morte (e, na verdade, estamos), poderíamos escolher “como” morrer – com ou sem dignidade, com ou sem coragem, com ou sem paz -.
Enfim, viver é fazer escolhas, é exercer nosso livre-arbítrio, mas essa liberdade tem que ser exercida com responsabilidade, tem que levar o ‘outro’ em consideração. Temos que assumir nossas escolhas sem medo de errar, pois a liberdade torna-se sábia a partir dos erros, como ensina Pierre Grimal em seu livro “Os erros da liberdade”, mas quando errarmos devemos ter a honradez de reconhecer que escolhemos errado.
No dizer do famoso filósofo da existência, Jean Paul Sartre “estamos condenados a ser livres”, e isso se dá na possibilidade que só o ser humano tem de estar sempre “se fazendo”, se”recriando”, recomeçando...


*Publ. in Jornal do Ypiranga nº74, maio/1996, pág.5.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

As dores que a alma sente

O bom relacionamento entre as pessoas depende basicamente do autoconhecimento que possuem, ou seja, de como elas se relacionam consigo mesmas, com os sentimentos e paixões que induzem seu pensar e agir, enfim, com sua mente e sua alma.
Aprender a observar a interação entre as várias instâncias psíquicas, reconhecê-las e às ardis sutilezas com que se inserem em nosso dia-a-dia, infelizmente têm sido “segredos” reservados, em princípio, apenas a especialistas em Psicoterapia.
Autoconhecer-se é ter consciência das verdadeiras motivações e sentimentos mais íntimos; é ver-nos como realmente somos, reconhecendo que geralmente somos nós próprios os responsáveis por emoções e sofrimentos que, de alguma forma, projetamos naqueles que nos cercam; é distinguir as dores e alegrias da alma, esses sofrimentos, desejos e prazeres que, de diferentes formas, afetam inevitavelmente todos os seres humanos, independente de sexo, escolaridade, cor, idade, credo ou status econômico-social.
Emoções, sentimento e paixões “negativas” como medo, culpa, submissão, apego, frustração, ambição, indiferença, preconceito, mágoa, ressentimento, raiva e ódio, que tanto nos fazem sofrer, sobrepujam a parte “positiva” de nossa psique. Sabemos que os seres humanos são fontes inesgotáveis de sofrimentos, o que torna esse rol meramente exemplificativo, pois inúmeros outros são recriados a cada dia.
A grande questão que se abre à nossa reflexão é a forma como manipulamos esses venenos do espírito, tentando esconder de nós mesmos o que tão facilmente enxergamos nas outras pessoas. A propósito, o grande pacifista Mahatma Gandhi (Mahatma significa Grande Alma) dizia que o mundo melhoraria muito se olhássemos a nós próprios com as mesmas lentes de aumento que usamos para julgar os outros.
Algumas patologias da alteridade são importantes dores que nossas almas sentem, conhecidas como os sete pecados capitais: ira, inveja, orgulho, avareza, gula, luxúria e preguiça. Esta última, que se pode traduzir em comodismo alienado, é co-responsável, ao lado do poder, pelo mais cruel dos maniqueísmos (dualidades) de que se serve a razão humana em sua ânsia de dominação: autoritarismo x submissão, produtor de carrascos e vítimas, que alimentam o mundo de exclusões em que vivemos.
Os estudos a respeito dessas questões básicas da alma humana, realizados transdisciplinarmente, ou seja, considerando-se os ensinamentos de mestres em muitas áreas do conhecimento, sejam psicólogos, sociólogos, filósofos, biólogos, ecologistas, antropólogos, etc., religiosos ou não, se encaminham sempre num mesmo sentido.
Se não tivermos a atenção e a sensibilidade de detectar, sentir e trabalhar em nós mesmos essas dores, acabaremos fazendo com que outros as sofram por nós, inclusive as outras espécies da natureza, com as quais, aliás, temos mantido uma abusiva e pretensiosa relação de dominação.
Acredito que a crise que a humanidade atravessa é o momento mais propício para acordarmos desse “sonho pecaminoso”, que não deve servir mais como um instrumento de projeção de culpa. A saída desse estado onírico de soberbo antropocentrismo e de narcisismo egóico culpável, encontraria no reconhecimento do outro o próprio sentido da vida, exorcizando o ancestral demônio da culpabilidade.
A propósito, a questão da culpa que nos tem sido tradicionalmente imposta de fora, - e que as mulheres, principalmente, conhecem tão bem -, é uma das dores mais agudas que atingem a humanidade, atormentando pacientes e terapeutas por sua conotação arquetípica.
Ao lado do ressentimento, que às vezes carregamos por toda a vida e do preconceito, que é covarde porque se volta sempre contra o mais frágil, a culpa forma um tripé doloroso que se opõe, no mínimo à busca por melhor qualidade de vida.
Nosso ego, instância relacional que é, debilita-se funcionalmente na construção de uma auto-imagem que idealizamos para ser aceitos pelos outros, fazendo-nos acreditar que somos tão bondosos e sábios, que o lado escuro – que os psicoterapeutas chamam de sombra – só existe nos outros. Ledo engano.
Rico ou pobre, branco ou negro, homem ou mulher, quem não carrega consigo alguma culpa, algum medo, alguma mágoa? Em sã consciência, quem pode afirmar que nunca foi sujeito ou objeto de preconceito? Será que nós, que escolhemos com tanto critério nosso alimento físico, como classe privilegiada da sociedade, temos parado para observar que tipo de alimento mental nós consumimos, que vem envenenando lentamente nossas almas?
Segundo os mais profundos pensadores contemporâneos, que resgataram a ideia dos ensinamentos dos grandes sábios da antiguidade, dando-lhe um enfoque mais consentâneo com a modernidade, a vida nada mais é do que uma imensa rede de relacionamentos, cuja grande riqueza é a biodiversidade.
Hoje, se faz premente pensar este relacionar-se em termos planetários inclusivos de todas as espécies da natureza, dentre as quais o homem se destaca como o “Grande Predador”. Pobre “homo-sapiens-demens” – para usar a preclara expressão cunhada por Edgar Morin -, que não se percebe como apenas um entre tantos milhões de filhos de Gaia, a Grande Mãe Terra.
Pobre ser humano, que tem utilizado sua “humanidade” como parâmetro subversivo de suas relações, por um lado, com irmãos “inferiores” e, por outro, com um divino “sobrenatural”, paradoxalmente concebido à sua própria imagem e semelhança, já que Lhe confere suas próprias emoções subjetivas.
Predador primordialmente de si mesmo, o homem se perde em lutas internas e externas, qual personagem-tipo de uma tragicomédia que, no imenso teatro da vida, chora e ri das desgraças que causa a si próprio e aos outros. Retirando (des) a benção divina (graça) de seus atos, dessacraliza a vida agregando peso ao já saturado fardo de culpabilidade inconsciente que carrega, ônus cultural indelével que herdou.
Como já tenho tido oportunidade de lembrar, temos que aprender a dialogar conosco mesmos e com o outro –seja ele quem for -, única maneira de nos exercitar para o diálogo com o divino, numa união meditativa que se dá também por meio da oração, misericordiosa e misteriosamente atendida. Mistério da Vida, mistério do Amor.
Todo relacionamento sobrevive à base de diálogos. Essa é a ética pela qual tanto clamamos, que deve substituir a falsa moral que tomou conta da sociedade. Baseada nessa forma de pensar - que respeita a complexidade do mundo e de cada um de nós - procuro transformar minhas palestras em diálogos com os participantes e meus escritos em diálogos com o leitor, a quem cabe o direito inalienável à interpretação.

* Síntese de palestra ministrada pela autora no ano de 2000, para membros do Rotary Clube Anchieta.