quarta-feira, 1 de abril de 2009

As dores que a alma sente

O bom relacionamento entre as pessoas depende basicamente do autoconhecimento que possuem, ou seja, de como elas se relacionam consigo mesmas, com os sentimentos e paixões que induzem seu pensar e agir, enfim, com sua mente e sua alma.
Aprender a observar a interação entre as várias instâncias psíquicas, reconhecê-las e às ardis sutilezas com que se inserem em nosso dia-a-dia, infelizmente têm sido “segredos” reservados, em princípio, apenas a especialistas em Psicoterapia.
Autoconhecer-se é ter consciência das verdadeiras motivações e sentimentos mais íntimos; é ver-nos como realmente somos, reconhecendo que geralmente somos nós próprios os responsáveis por emoções e sofrimentos que, de alguma forma, projetamos naqueles que nos cercam; é distinguir as dores e alegrias da alma, esses sofrimentos, desejos e prazeres que, de diferentes formas, afetam inevitavelmente todos os seres humanos, independente de sexo, escolaridade, cor, idade, credo ou status econômico-social.
Emoções, sentimento e paixões “negativas” como medo, culpa, submissão, apego, frustração, ambição, indiferença, preconceito, mágoa, ressentimento, raiva e ódio, que tanto nos fazem sofrer, sobrepujam a parte “positiva” de nossa psique. Sabemos que os seres humanos são fontes inesgotáveis de sofrimentos, o que torna esse rol meramente exemplificativo, pois inúmeros outros são recriados a cada dia.
A grande questão que se abre à nossa reflexão é a forma como manipulamos esses venenos do espírito, tentando esconder de nós mesmos o que tão facilmente enxergamos nas outras pessoas. A propósito, o grande pacifista Mahatma Gandhi (Mahatma significa Grande Alma) dizia que o mundo melhoraria muito se olhássemos a nós próprios com as mesmas lentes de aumento que usamos para julgar os outros.
Algumas patologias da alteridade são importantes dores que nossas almas sentem, conhecidas como os sete pecados capitais: ira, inveja, orgulho, avareza, gula, luxúria e preguiça. Esta última, que se pode traduzir em comodismo alienado, é co-responsável, ao lado do poder, pelo mais cruel dos maniqueísmos (dualidades) de que se serve a razão humana em sua ânsia de dominação: autoritarismo x submissão, produtor de carrascos e vítimas, que alimentam o mundo de exclusões em que vivemos.
Os estudos a respeito dessas questões básicas da alma humana, realizados transdisciplinarmente, ou seja, considerando-se os ensinamentos de mestres em muitas áreas do conhecimento, sejam psicólogos, sociólogos, filósofos, biólogos, ecologistas, antropólogos, etc., religiosos ou não, se encaminham sempre num mesmo sentido.
Se não tivermos a atenção e a sensibilidade de detectar, sentir e trabalhar em nós mesmos essas dores, acabaremos fazendo com que outros as sofram por nós, inclusive as outras espécies da natureza, com as quais, aliás, temos mantido uma abusiva e pretensiosa relação de dominação.
Acredito que a crise que a humanidade atravessa é o momento mais propício para acordarmos desse “sonho pecaminoso”, que não deve servir mais como um instrumento de projeção de culpa. A saída desse estado onírico de soberbo antropocentrismo e de narcisismo egóico culpável, encontraria no reconhecimento do outro o próprio sentido da vida, exorcizando o ancestral demônio da culpabilidade.
A propósito, a questão da culpa que nos tem sido tradicionalmente imposta de fora, - e que as mulheres, principalmente, conhecem tão bem -, é uma das dores mais agudas que atingem a humanidade, atormentando pacientes e terapeutas por sua conotação arquetípica.
Ao lado do ressentimento, que às vezes carregamos por toda a vida e do preconceito, que é covarde porque se volta sempre contra o mais frágil, a culpa forma um tripé doloroso que se opõe, no mínimo à busca por melhor qualidade de vida.
Nosso ego, instância relacional que é, debilita-se funcionalmente na construção de uma auto-imagem que idealizamos para ser aceitos pelos outros, fazendo-nos acreditar que somos tão bondosos e sábios, que o lado escuro – que os psicoterapeutas chamam de sombra – só existe nos outros. Ledo engano.
Rico ou pobre, branco ou negro, homem ou mulher, quem não carrega consigo alguma culpa, algum medo, alguma mágoa? Em sã consciência, quem pode afirmar que nunca foi sujeito ou objeto de preconceito? Será que nós, que escolhemos com tanto critério nosso alimento físico, como classe privilegiada da sociedade, temos parado para observar que tipo de alimento mental nós consumimos, que vem envenenando lentamente nossas almas?
Segundo os mais profundos pensadores contemporâneos, que resgataram a ideia dos ensinamentos dos grandes sábios da antiguidade, dando-lhe um enfoque mais consentâneo com a modernidade, a vida nada mais é do que uma imensa rede de relacionamentos, cuja grande riqueza é a biodiversidade.
Hoje, se faz premente pensar este relacionar-se em termos planetários inclusivos de todas as espécies da natureza, dentre as quais o homem se destaca como o “Grande Predador”. Pobre “homo-sapiens-demens” – para usar a preclara expressão cunhada por Edgar Morin -, que não se percebe como apenas um entre tantos milhões de filhos de Gaia, a Grande Mãe Terra.
Pobre ser humano, que tem utilizado sua “humanidade” como parâmetro subversivo de suas relações, por um lado, com irmãos “inferiores” e, por outro, com um divino “sobrenatural”, paradoxalmente concebido à sua própria imagem e semelhança, já que Lhe confere suas próprias emoções subjetivas.
Predador primordialmente de si mesmo, o homem se perde em lutas internas e externas, qual personagem-tipo de uma tragicomédia que, no imenso teatro da vida, chora e ri das desgraças que causa a si próprio e aos outros. Retirando (des) a benção divina (graça) de seus atos, dessacraliza a vida agregando peso ao já saturado fardo de culpabilidade inconsciente que carrega, ônus cultural indelével que herdou.
Como já tenho tido oportunidade de lembrar, temos que aprender a dialogar conosco mesmos e com o outro –seja ele quem for -, única maneira de nos exercitar para o diálogo com o divino, numa união meditativa que se dá também por meio da oração, misericordiosa e misteriosamente atendida. Mistério da Vida, mistério do Amor.
Todo relacionamento sobrevive à base de diálogos. Essa é a ética pela qual tanto clamamos, que deve substituir a falsa moral que tomou conta da sociedade. Baseada nessa forma de pensar - que respeita a complexidade do mundo e de cada um de nós - procuro transformar minhas palestras em diálogos com os participantes e meus escritos em diálogos com o leitor, a quem cabe o direito inalienável à interpretação.

* Síntese de palestra ministrada pela autora no ano de 2000, para membros do Rotary Clube Anchieta.

2 comentários:

Sandra disse...

Oi, Suzi!Tenho um orgulho imenso em ser sobrinha de uma pessoa que consegue, com palavras simples, fazer com que a gente se transporte para dentro de nós e enxergue, nem que seja de longe, o quanto ainda precisamos melhorar, para que o próximo cresça. Muito obrigada.

Suzete Carvalho disse...

Olá, querida. Obrigada digo eu. A razão de meu trabalho é exatamente essa: propor que cada um de nós, sempre que possível, mergulhe dentro de si mesmo. Parafraseando o seu generoso comentário, eu diria que precisamos crescer muito, para que nosso entorno melhore. E para que cresçamos interiormente é necessário que tenhamos a coragem de enfrentar as nossas próprias sombras.
Beijão.
Ah, também tenho muito orgulho de ser tia de uma mulher culta, bonita e batalhadora como você.