terça-feira, 26 de maio de 2009

A boa 'desmemória'

Dizem que quem nunca vê motivos para se sentir culpado não tem boa memória. Refletindo sobre o tema, como é de meu feitio, logo comecei a elaborar uma complexa teoria sobre as causas e conseqüências dessa ‘desmemória’.
Dona Nena
[1], minha fiel conselheira nesses “momentos filosóficos”, logo veio em meu socorro: - “Não precisa ficar ‘paranoiada’, como diz sua filha. Afinal, é melhor não sentir culpas do que carregá-las ao longo da vida”.
Irritada por haver sido interrompida em minhas divagações, desta vez ousei retrucar: - “E você, deixe de me esquizofrenizar. Meus pensamentos têm uma sequência lógica e você nem me deu oportunidade de expô-los”. Mas, imediatamente, me arrependi, com medo de perder a fonte de inspiração que sua sabedoria abastece em mim: -“Estou arrependida por ter sido tão impulsiva. Você me perdoa o destempero?”.
Com a maternal paciência de sempre, Dona Nena respondeu: - “É isso, minha filha. Perceba que, sem grandes elucubrações, você encontrou as palavras-chave para solução do problema: arrependimento e perdão. A seguir, brincou: “Causas não vêm ao causo. O importante é o aqui-e-agora”.
E, como sempre, minha sábia instrutora arrematou com chave-de-ouro: “Culpa se cura com arrependimento. Arrepender-se requer perdão. E perdoar significa esquecer culpas e mágoas. Essa a boa desmemória. Apenas não se esqueça de que sempre é tempo de recomeçar e que é mais fácil viver sem a sobrecarga adicional que o peso da culpa acarreta”.


* Embora coincidente, o título desta crônica não tem a ver com o blog do poeta Diniz Gonçalves Jr., que pode ser conferido entre meus links sob o título “desmemórias”.


[1] - Cf. a primeira crônica postada no blog, em data de 14/12/2008, sob o título Dona Nena.

Nó górdio II

Parte I
Repensando a questão do tabagismo


No último dia 04 de maio, em comentário ao meu artigo (postado sob o marcador Convite) e intitulado Tatame, a jornalista Maristela Ajalla propôs a debate o interessante tema de se “tentar desenroscar os passos do passado, do presente e do futuro, como uma nova possibilidade de ver o mundo, de estar nele e de fazer a diferença”.
Tomando a proposta como uma provocação, já que adoro desafios filosófico-intelectuais, postei, no dia seguinte (05/05), um artigo intitulado Nó Górdio, no qual procurei demonstrar que o tabagismo, dentre tantas outras mazelas das quais gostaríamos de nos “desenroscar”, é uma questão mais complexa do que a simples díade vício/saúde com que nos é atualmente apresentada, já que se reveste de conotações, no mínimo, bio-psico-sociológicas.
O poeta Diniz Gonçalves Jr., por sua vez, enriqueceu o debate em comentário postado em 10/05, lembrando que o cigarro é também visto, em alguns ambientes, como rebeldia, insubordinação.
Pois bem, hoje, enquanto deixava decantar a inspiração sobre mais um passo a ser desenroscado, resolvi revisitar alguns blogs cujos autores, em algum momento, postaram comentários ao meu. “Coincidentemente”, o primeiro blog no qual adentrei, ostentava o instigante título de “Meditação do Cigarro 2”. Ali, as palavras de Osho, apresentadas com a simplicidade que caracteriza os verdadeiros mestres, me soaram como uma ‘chamada’ aos benefícios da meditação, de cujas práticas tenho andado – e aqui faço um mea-culpa -, um tanto afastada.
Divagações e sincronicidades à parte, retorno aos ensinamentos contidos no blog cujo nome é exatamente palavrasdeosho. “Se os zen-budistas podem meditar enquanto tomam chá, porque você não pode fazer o mesmo com o cigarro”? indaga o sábio. “O chá, aliás, contém os mesmos estimulantes que o cigarro, não há muita diferença”, complementa.
Claro está que sua intenção não é sugerir uma forma de alimentarmos o vício, mas ao contrário, sua proposta é exatamente oposta, já que toda meditação implica em conscientização. Assim, ao fumar com atenção, vagarosamente, retirando do ato o automatismo que caracteriza nossas ações alienadas, iremos tomando consciência da absoluta falta de sentido desse hábito, cujas dolorosas implicações não compensam o fugaz prazer dele advindo.
O conselho pode ser testado em muitas outras questões sobre as quais estamos precisando nos conscientizar. “A consciência é uma virtude”, diz Osho. Eu acrescentaria, parafraseando Sartre: “Estamos condenados a ser conscientes”. A consciência é uma necessidade humana, nosso destino inexorável.
Antes, porém, de alcançar esse promissor futuro, precisamos desenroscar alguns passos dados no passado e no presente, que desatar alguns nós que a eles nos prendem. Voltarei ao tema, bem como aos da meditação e da sincronicidade, mas confesso que meu trabalho depende da efetiva participação dos leitores, pois sem o diálogo que os comentários, críticas, depoimentos e sugestões proporcionam, o blog não faria sentido.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Samsara

Argutas e insensíveis
moiras tramam poderosas teias
per omnia seculum condicionando
o homem
a viver sofrer morrer
se emaranhando.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

O SITUAR-SE

Uma das situações mais difíceis e estressantes que o ser humano pode enfrentar na vida é sentir-se perdido.
Saber onde estamos requer um estado de atenção que nos permita compreender a posição do outro e a nossa própria. Saber como estamos, implica reconhecer-nos como seres humanos, passíveis de limitações e condicionamentos, fraquezas e defeitos, mas também qualidades e potencialidades.
A real compreensão de nossa situação, seja física, social ou planetária, requer uma observação isenta de julgamentos egóicos, que leve em conta o outro, seja ele quem for.
Enfim, entender porque estamos como estamos, requer a compreensão de que estamos todos inseridos numa complexa estrutura planetária, biológica, cultural e social, que envolve necessariamente aspectos históricos, éticos e psicológicos, no mínimo.
O principal condicionamento mental a que estamos tradicionalmente submetidos é o do pensamento lógico-linear, fruto de uma tradição patriarcal e individualista, que fragmenta a realidade em compartimentos estanques, sem levar em conta a riqueza das diferenças, separando áreas de conhecimento e os próprios seres.
Esse padrão mental, também chamado aristotélico ou cartesiano, tem como característica básica a bipolarização do ser e do saber, pois alimenta arcaicas dualidades como certo/errado, bem/mal ou bom/mau, bonito/feio, amor/ódio ou apego/rejeição, rico/pobre, corpo/mente, homem/natureza, etc. Não somos "isto ou aquilo", mas "isto e aquilo".
Há que levar em conta ainda que competitividade, alienação comodista e consumismo são alguns dos perversos elementos que, baseados na idéia de que a toda causa corresponde um efeito, ou seja, que “cada um tem o que merece”, justificam o autoritarismo e a violência, reforçando a milenar noção de culpa (crime e castigo) e os preconceitos que nos foram introjetados pelas tradições religiosas, familiares e culturais, formando a ideologia da dominação.
O desenvolvimento técnico e a submissão a uma Economia de Mercado globalizada, foram a contribuição final desse pensamento linear, para a crise generalizada que estamos atravessando e que se traduz num aumento progressivo da miséria, drogas, desemprego, corrupção, abandono de menores, criminalidade e mortalidade entre os jovens, desrespeito aos direitos humanos, enfim, numa inversão (ou mesmo perda) total dos mais básicos valores humanos e universais.
Reconhecendo que os parâmetros do pensamento centrado exclusivamente na razão humana são insuficientes para solucionar os problemas dele mesmo decorrentes, hoje se propõe a mudança desse arcaico padrão mental para um paradigma ecocentrado, que leve em conta também a necessária participação relacional entre a natureza, seus seres e saberes, na harmonia do todo sistêmico em que estamos inseridos.
Esse pensamento sistêmico dá elasticidade ao racional, instituindo a possibilidade do "talvez" como contra-ponto às certezas e admitindo a intuição, a sensação, a experiência, a sincronicidade e o insight, como fontes complementares de um conhecimento mais holístico – do grego holos (todo) -, transdisciplinar e dialógico (fundado no diálogo entre as partes a partir do todo e o todo a partir da harmonia destas).
Essa dialeticidade é fundada no reconhecimento da interdependência entre todas as coisas, que a teoria da complexidade (de “com” + plexus = “o que está tecido junto”) encampou dos antigos ensinamentos que apresentavam o mundo como uma imensa e dinâmica teia ou rede de relacionamentos necessariamente interconectados.
O resgate dessa noção faz repensar em todos os níveis o papel perverso do individualismo competitivo e reintroduz os conceitos de alteridade e altruísmo (de alter = outro), cooperação, diversidade e co-participação como imprescindíveis não somente à harmonia social, mas também à harmonia de todas as espécies e, destas, com a natureza.
Socialmente, esse repensar o próprio pensamento, que já se reflete em palavras e atitudes dos mais atentos, leva diretamente à busca de soluções para os graves problemas de exclusão que vitimizam as chamadas minorias que, constituindo na verdade a esmagadora maioria da população, revelam uma das grandes ambigüidades do racionalismo-lógico.
Pobres, negros, mulheres, idosos, analfabetos, servidores públicos, crianças carentes, homossexuais, portadores de deficiências físicas ou mentais, entre outros, formam a massa dos excluídos de sempre, curvando-se à dominação político-econômica de pequenos grupos de privilegiados, beneficiários únicos de uma cidadania irrestrita.
Por outro lado, já não basta repensar nossas relações com a natureza, com vistas à preservação e sustentabilidade dos ecossistemas, reciclando materiais descartáveis, replantando árvores, reaproveitando água, economizando energia e materiais não renováveis. Faz-se urgente e primordial investigar todas as possibilidades para reverter o trágico quadro de degradação ambiental e climática que já vislumbramos, e investir em projetos viáveis a curto prazo, para garantir um mínimo de dignidade à vida.
Nesse contexto cabe não apenas aos dirigentes e cientistas, mas também e principalmente aos pais e educadores, reavaliar o importante papel que desempenham na construção social e na sobrevivência do planeta, levando em conta os novos paradigmas que se impõem à formação responsável das gerações mais jovens.


* Edição de palestra ministrada em 2001 para professores da Rede de Ensino Fundamental.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Podemos Fazer a Diferença

Sonhei que havia sido abduzida por espaçonautas componentes de uma frota interplanetária de defesa da vida em todas as suas formas. Sua aparência era agradável, muito próxima à dos seres humanos, testa larga, olhar profundo e uma aura de compaixão que eu jamais havia vislumbrado em alguém.
Dirigiram-se a mim por meio de uma mulher, esta sim decididamente humana, cujas palavras, que tentarei transmitir aqui de forma sucinta, porém o mais fielmente possível, calaram fundo em meu coração: - “Filha, não me faça perguntas agora, apenas ouça com atenção. Somos representantes de alguns poucos planetas ainda habitados desta Galáxia e estamos muito preocupados com a sobrevivência da Terra, pois de alguma forma, a instabilidade de um se reflete na de todos os outros.
Infelizmente, não nos é permitido interferir diretamente no processo de extinção que está sendo desencadeado aceleradamente, sob as vistas complacentes ou alienadas dos seres humanos, como já vimos acontecer em outros planetas, por isso estamos entrando em contato com pessoas que tenham possibilidade de se comunicar com grupos que, por seu número e posição civil, possam fazer a diferença, como é o caso, no Brasil, dos servidores públicos entre outros.
Por favor, diga a todos que, se amam realmente seus filhos e netos e quiserem livrá-los de grandes sofrimentos decorrentes da degradação do ambiente e da modificação violenta das condições climáticas, devem se entregar individualmente ao trabalho, sem adiar e transferir a responsabilidade que é de cada um e não apenas dos cientistas e governantes.
Que não se limitem a esperar, clamar, criticar, mas se envolvam pessoalmente, reciclando cotidiana e sistematicamente todos os materiais descartáveis, plantando árvores, economizando água e energia não renovável, enfim, procurando conhecer e explicar a suas crianças todas as formas de conservação da natureza.” - “Quem é você?”, ousei perguntar. – “Na Terra, me chamavam Dona Nena. Aqui, considere-me seu alter ego”.
Acordei com uma sensação inefável de experiência vivida. Por via das dúvidas, fica o alerta, pois me parece que não há tempo a perder e assim, se não começarmos a agir imediatamente, o futuro de nossos filhos e netos estará indefectivelmente comprometido. De minha parte, tentarei fazer o melhor possível e com a permissão dos leitores, adotarei Dona Nena como a conselheira perene de meus escritos e transcritos.


* Publ. no Jornal Folha do Servidor Público, set/2008, pág.15.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Planeta Água?

Ambientalismo, aquecimento global, efeito estufa, expressões que estão na ordem do dia, nos remetem imediatamente à questão das políticas públicas e ao trabalho de Ongs preocupadas com “a tal da ecologia”. Culturalmente, estamos acostumados a debitar a obrigação de sanar problemas de toda ordem, exclusivamente às instituições, governamentais ou não, que existem para isso. “Afinal, pagamos nossos impostos,” é o mote/desculpa de quem critica sem participar.
A nós, acreditamos, nos compete apenas – embora nem sempre ajamos nesse sentido – reciclar latas e plásticos. “E olhe lá, que já faço a minha parte”, como ouvi de uma vizinha que nunca acerta a lixeira de recicláveis. Mas ... e quanto à água, o que sabemos ou fazemos para minimizar o problema? Que problema? Bem, de acordo com a FAO (agência da ONU), em 2025 quase dois bilhões de pessoas viverão em regiões com falta drástica de água.
Instada a escrever sobre o tema, vou a uma fonte óbvia, o site da Sabesp, e levo um susto: ¾ da crosta terrestre são cobertos de água, porém 98% da água da Terra é salgada e dos 2% da água doce existente, 76% está congelada, 22% no subsolo e apenas 2% nos rios e lagos. E, para completar a (dramática) realidade, desses 2% últimos, apenas 0,7% é potável.
Preocupada com a questão, a ONU tem organizado com alguns parceiros internacionais, desde abril de 1997, um Forum Mundial trianual da Água, sendo que o último encontro foi realizado em Istambul, na Turquia, em abril deste ano de 2009. Novo susto: - “Meu Deus, faltam apenas dezesseis anos para a trágica previsão da FAO sobre a escassez da água”! Dona Nena, minha sábia conselheira (meu alter ego, se preferirem), responde: - “Pois é, não há tempo a perder. Já lhe avisei anteriormente, que não adianta transferir a culpa às grandes empresas ou ao governo. Você também é responsável”. [1]
É verdade que as maiores responsáveis são as grandes empresas, que deveriam providenciar com urgência a reutilização da água em seus processos produtivos, mas, afinal, somos quase seis bilhões de seres humanos a consumir aleatoriamente água e energia não renováveis. O envolvimento pessoal de cada um com a questão, ensinando e dando exemplos de economia e reúso, especialmente às novas gerações, com certeza faria a diferença.
A propósito, a AFPESP está tentando fazer a sua parte, investindo em projetos que incluem a instalação de caixas para coleta de águas pluviais e águas de mina, para transformação em água potável, a par da instalação progressiva de torneiras contemporizadas em suas URLs, além de outras providências que visam a adoção de medidas de racionalização e uma nova cultura de sustentabilidade.
Parece-me que deveríamos ampliar nossa terminologia ecológica, também no que concerne à água, e não apenas para reflexão e cultura, mas como uma ponte concreta de ações conscientes para atravessar os novos tempos. É uma questão de humanidade.


Publ. in Folhado Servidor Público, maio/2009, pág.9.



1] Cf. crônica Podemos Fazer a Diferença, in Folha do Servidor Público, set/2008, pág.15.

terça-feira, 12 de maio de 2009

A Mágica

Sob a auréola da Sabedoria
Muitos escondem a própria hipocrisia.

Sob o manto da bondade
Pode estar a pusilanimidade.

Sob a capa da distinção
Cabem anos de depravação.

Homo Sapiens você é o Rei
Da prestidigitação.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

BEM ADMINISTRAR

O conceito de Administração varia no tempo e no espaço já que está indissoluvelmente ligado à ideologia que perpassa a política num determinado local, numa determinada época. Mas a verdadeira Administração é algo mais complexo do que deter o poder a qualquer custo e investir aleatoriamente em bens nababescos, “para inglês ver”, como se fazia, por exemplo, à época da ditadura.
“Administrar é construir estradas” repetia a inteligência centralizadora daqueles anos obscuros. Belém-Brasília, Transamazônica e tantos outros ‘elefantes brancos’ hoje aí estão, abandonados, a demonstrar também dessa forma o equívoco das decisões totalitárias e o descaso para com o patrimônio público.
Uma Administração pautada no autoritarismo e na manipulação não se sustenta por tempo muito longo, pois o inconformismo e se alastra paulatinamente até abraçar suas fundações. Assim, administrar bem requer acima de tudo consideração para com os administrados, ou seja, administrar é gerir bens e investir no humano, e não o contrário, como ainda pensam os autocratas de plantão.
Um dos termômetros de uma boa administração voltada ao associativismo é o bom relacionamento social entre seus membros, a freqüência maciça dos associados nas várias atividades, enfim, a possibilidade de participação efetiva dos sócios mantenedores e seus dependentes de todas as idades e de ambos os sexos, nas várias áreas de atendimento colocadas ao seu alcance.
Não há falar em boa administração sem respeito aos princípios éticos e democráticos, que se fundamentam também na autonomia dos poderes, nas eleições e investimentos transparentes e no respeito humano. Respeito que se traduz na igualdade de tratamento e oportunidade dispensada a todos, independente de sexo, raça e posição social de que desfrutem.
“Administrar bem”, portanto, não significa apenas administrar “bens” como pensam os desavisados. Significa acima de tudo, isto sim, construir possibilidades de desenvolvimento sustentado, de participação criativa e de relacionamentos inclusivos.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Nó górdio

Sou de uma geração que via no cigarro uma forma charmosa de se posicionar no mundo adulto. Fumar era uma questão de status. À falta de televisão, de computador e de todas as outras engenhocas decorrentes do desenvolvimento tecnológico, víamos no comportamento dos astros e estrelas de cinema o paradigma para nossa postura social. Com que volúpia aqueles homens e mulheres de beleza arrebatadora, se entregavam às sensuais tragadas, em elegantes reuniões sociais!
Entre os mais jovens, fumar era uma expressão de rebeldia, hábito que se lhes apresentava como uma questão de maturidade e prestígio. Os pais, geralmente fumantes eles próprios, sem argumentos convincentes para reprimir o vício prematuro, limitavam-se a um argumento de lógica contestável: “Faça o que eu digo e não o que eu faço”. Era uma questão de “respeito”, não de Saúde. Então fumávamos “escondidos” e todos ficavam felizes.
Na decoração, toda casa ostentava cinzeiros estrategicamente distribuídos sobre a mobília. Até algumas salas de teatro e cinema possuíam cinzeiros embutidos nos braços das poltronas. Nas colunas sociais de Jornais e Revistas, fotos de mulheres da “Alta Sociedade”, pernas elegantemente cruzadas e um indefectível cigarro nas mãos enluvadas. Na vitrola, o tango convidativo: “Fumar é um prazer, jovial, sensual...”.
“Dourava-se a pílula”, naqueles “Anos Dourados”. Hoje, percebo que eram também anos de “desdouro”, porque alienados. Cidadania, direitos da mulher, ecologia, entre outros temas importantes, não eram assuntos propostos nos currículos escolares, nem debatidos na mídia de então. O divórcio e os anticoncepcionais chegaram quase juntos com a Ditadura e mal tivemos tempo de elaborar nossas recentes liberdades.
O cigarro, já consolidado como vício inveterado (invertebrado, no dizer de um amigo médico), era uma escapatória para nossos anseios, à qual nos entregávamos como a um ritual sagrado. A televisão, que também já se consolidara a essa altura como “personagem” imprescindível em todos os lares, fazia a sua parte tanto explícita como subliminarmente para alimentar o ritual, oferecendo metáforas profundas de conexão[1].
Hoje, em que pese a efetiva comprovação de que o fumo é prejudicial à saúde, o cigarro foi “elevado” à categoria de responsável por todos os males que afetam o organismo dos seres humanos. A defesa dos direitos dos fumantes passivos está na “ordem do dia” dos zelosos guardiões da saúde, encabeçados por convertidos: “Se eu consegui, porque VOCÊ não pode”?, por comilões (às vezes obesos) também inveterados: “Graças a Deus, eu não tenho vícios” ou por pretensos (e preconceituosos) estetas: “Coisa mais feia, mulher fumando”.
Não há “cachimbo da paz” que possa promover uma solução pacífica e equilibrada nesse conflito, até porque nossa evoluída sociedade não é afeita a metáforas e rituais: “Isso é coisa de gente não civilizada. Mediação de conflitos não se faz com baforadas”, como ouvi de conceituado “doutor” cujos conceitos político-sociais eu contestava. A propósito, sincronísticamente, enquanto eu escrevia estas linhas, o noticiário (Rádio Cultura, 16 horas) anunciava a criação de um “esquadrão caça-fumaça” (sic) para assegurar o cumprimento da lei estadual anti-tabaco.
Afinal, esquadrões e exércitos, sim, são coisa de gente civilizada. E não se fale em desvio de função ou de objetivo, já que fiscais e policiais do Estado têm absoluto controle sobre a saúde e a segurança dos cidadãos, haja vista a confiável higiene mantida em bares e restaurantes ou a tranqüilidade com que se pode deambular pelas ruas da cidade sem o risco de um assalto ou um seqüestro-relâmpago! Não sendo de sua conta cuidar de “questões menores”, como a evasão fiscal, o acesso à educação – já que todos os menores carentes estão na escola e não nas ruas – e a infra-estrutura de bairros afastados, só resta ao Estado, em nome do bem comum, acabar com o problema mais avassalador para a sociedade: o fumante, “bode-expiatório” da hora.
Acho que já vimos esse “filme” antes, sob o nome de “caça às bruxas”, desencadeado contra hereges, judeus ou “comedores de criancinhas”, entre outros, como estratégia para desviar atenção das verdadeiras mazelas dos detentores do poder. Ironias à parte, o fato é que, ao mal físico efetivo que possa carregar, hoje o fumante tem a sobrecarga da culpa e da rejeição social, que lhe solapam a auto-estima. É mais um discriminado a constar do index dos excluídos. De vítima das injunções sócio-econômicas, passa a algoz dos desprotegidos não-fumantes.
Esquizofrenizado por posturas sociais antagônicas e por suas próprias contradições (saber que faz mal e sentir vontade de parar, mas não conseguir), o tabagista passa a fazer com neurose – e até medo de ser agredido, já que agora é oficialmente discriminado - um gesto que antes só lhe causava prazer. Ressurge a já esquecida rebeldia adolescente e quanto mais a sociedade condena, maior é a vontade de acender um cigarro.
Como desatar esses verdadeiros nós górdios, pessoais e/ou sociais? Como substituir rituais praticados durante toda uma vida? Como desfazer os passos de uma caminhada de décadas ou de uma política maquiavélica arquimilenar? São questões a serem enfrentadas por todos, fumantes ou não, de preferência com tolerância recíproca. Afinal, além da má cheirosa fumaça, existe coisa mais desagradável do que administradores desvinculados da realidade ou a arrogância daqueles que se acreditam “imunes” a vícios ou mesmo a exalar qualquer espécie de odor?
Voltando a falar sério, atualmente alguns estudiosos têm feito referências a uma possível predisposição genética para o tabagismo, mas, como no caso de outros supostos “desvios de conduta”, o tema ainda é polêmico. Se confirmada essa possibilidade, talvez a ciência possa criar mecanismos de prevenção, tornando dispensáveis os “esquadrões de caça”, para tristeza dos moralistas e saneadores (das mazelas alheias, não das próprias), sempre prontos a projetar suas frustrações sobre quem ousa não se enquadrar ao politicamente correto.
São questões complexas que emergem dessa rede de interconecções que compõe o viver, onde cada trama (ponto ou nó) pode representar um obstáculo à felicidade plena. Voltarei ao tema/desafio de detectar os nós cegos ou górdios, que se apresentam em profusão no cotidiano de todos nós. Gostaria que os leitores me ajudassem postando comentários, críticas e provocações ao debate sobre esse ou outros temas, para que, juntos, possamos buscar caminhos para o desfazimento dos nós que mais nos atormentam.



[1] Cf. as pesquisas da Olson Zaltman Associates.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Tatame

Minhas netas costumam brincar sobre um tapete de borracha desmontável, cujas partes coloridas são encaixadas, como as peças de um quebra-cabeças.[1] Montado, o tapete funciona também como uma espécie de tatame, destinado a suavizar eventuais quedas. Olhando as crianças a brincar, percebi como criavam situações, sempre novas, a partir de suas próprias observações e experiências sobre os acontecimentos da vida “real”.
Sempre atenta às metáforas da vida, logo percebi aí um ensinamento que se aplicava como luva à minha situação de blogueira. “É isso”, pensei. Desde dezembro venho postando em prosa e verso pequenas matérias – geralmente já publicadas em Revistas ou Jornais – e também alguns resumos de publicações mais extensas que, embora tenham uma conotação abrangente, sempre foram vistas essencialmente sob uma perspectiva filosófico-literária. Agora, o tatame, tapete ou quebra-cabeças, está preparado. É chegada a hora de ir à luta, à brincadeira, ou ao jogo propriamente dito, como queiram.
“Coincidentemente”, nos últimos dias passei por experiências dolorosas concretas que por sua natureza me levaram a escrever um depoimento e algumas crônicas mais objetivas, que condizem com a proposta básica do blog: abrir-se a um diálogo sobre questões que emergem do cotidiano e nos afetam estruturalmente, transcender a literatura e a própria filosofia, na medida em que estas somente farão sentido se voltadas a uma melhor qualidade de vida para todos.
Nesta nova fase volto a convidar meus “irmãos” leitores, a deixarem comentários realmente críticos, propostas de novos temas, questionamentos e depoimentos a respeito de cada assunto de seu interesse. Sugestões de links e de parcerias com organizações, governamentais ou não, voltadas principalmente à educação, também são bem-vindas. É tempo de agir. Façamos da palavra um instrumento de transformação interior e de ação social.
[1] Vide tb crônica sob o título Quebra-Cabeças, postada em 03/01/09.