terça-feira, 5 de maio de 2009

Nó górdio

Sou de uma geração que via no cigarro uma forma charmosa de se posicionar no mundo adulto. Fumar era uma questão de status. À falta de televisão, de computador e de todas as outras engenhocas decorrentes do desenvolvimento tecnológico, víamos no comportamento dos astros e estrelas de cinema o paradigma para nossa postura social. Com que volúpia aqueles homens e mulheres de beleza arrebatadora, se entregavam às sensuais tragadas, em elegantes reuniões sociais!
Entre os mais jovens, fumar era uma expressão de rebeldia, hábito que se lhes apresentava como uma questão de maturidade e prestígio. Os pais, geralmente fumantes eles próprios, sem argumentos convincentes para reprimir o vício prematuro, limitavam-se a um argumento de lógica contestável: “Faça o que eu digo e não o que eu faço”. Era uma questão de “respeito”, não de Saúde. Então fumávamos “escondidos” e todos ficavam felizes.
Na decoração, toda casa ostentava cinzeiros estrategicamente distribuídos sobre a mobília. Até algumas salas de teatro e cinema possuíam cinzeiros embutidos nos braços das poltronas. Nas colunas sociais de Jornais e Revistas, fotos de mulheres da “Alta Sociedade”, pernas elegantemente cruzadas e um indefectível cigarro nas mãos enluvadas. Na vitrola, o tango convidativo: “Fumar é um prazer, jovial, sensual...”.
“Dourava-se a pílula”, naqueles “Anos Dourados”. Hoje, percebo que eram também anos de “desdouro”, porque alienados. Cidadania, direitos da mulher, ecologia, entre outros temas importantes, não eram assuntos propostos nos currículos escolares, nem debatidos na mídia de então. O divórcio e os anticoncepcionais chegaram quase juntos com a Ditadura e mal tivemos tempo de elaborar nossas recentes liberdades.
O cigarro, já consolidado como vício inveterado (invertebrado, no dizer de um amigo médico), era uma escapatória para nossos anseios, à qual nos entregávamos como a um ritual sagrado. A televisão, que também já se consolidara a essa altura como “personagem” imprescindível em todos os lares, fazia a sua parte tanto explícita como subliminarmente para alimentar o ritual, oferecendo metáforas profundas de conexão[1].
Hoje, em que pese a efetiva comprovação de que o fumo é prejudicial à saúde, o cigarro foi “elevado” à categoria de responsável por todos os males que afetam o organismo dos seres humanos. A defesa dos direitos dos fumantes passivos está na “ordem do dia” dos zelosos guardiões da saúde, encabeçados por convertidos: “Se eu consegui, porque VOCÊ não pode”?, por comilões (às vezes obesos) também inveterados: “Graças a Deus, eu não tenho vícios” ou por pretensos (e preconceituosos) estetas: “Coisa mais feia, mulher fumando”.
Não há “cachimbo da paz” que possa promover uma solução pacífica e equilibrada nesse conflito, até porque nossa evoluída sociedade não é afeita a metáforas e rituais: “Isso é coisa de gente não civilizada. Mediação de conflitos não se faz com baforadas”, como ouvi de conceituado “doutor” cujos conceitos político-sociais eu contestava. A propósito, sincronísticamente, enquanto eu escrevia estas linhas, o noticiário (Rádio Cultura, 16 horas) anunciava a criação de um “esquadrão caça-fumaça” (sic) para assegurar o cumprimento da lei estadual anti-tabaco.
Afinal, esquadrões e exércitos, sim, são coisa de gente civilizada. E não se fale em desvio de função ou de objetivo, já que fiscais e policiais do Estado têm absoluto controle sobre a saúde e a segurança dos cidadãos, haja vista a confiável higiene mantida em bares e restaurantes ou a tranqüilidade com que se pode deambular pelas ruas da cidade sem o risco de um assalto ou um seqüestro-relâmpago! Não sendo de sua conta cuidar de “questões menores”, como a evasão fiscal, o acesso à educação – já que todos os menores carentes estão na escola e não nas ruas – e a infra-estrutura de bairros afastados, só resta ao Estado, em nome do bem comum, acabar com o problema mais avassalador para a sociedade: o fumante, “bode-expiatório” da hora.
Acho que já vimos esse “filme” antes, sob o nome de “caça às bruxas”, desencadeado contra hereges, judeus ou “comedores de criancinhas”, entre outros, como estratégia para desviar atenção das verdadeiras mazelas dos detentores do poder. Ironias à parte, o fato é que, ao mal físico efetivo que possa carregar, hoje o fumante tem a sobrecarga da culpa e da rejeição social, que lhe solapam a auto-estima. É mais um discriminado a constar do index dos excluídos. De vítima das injunções sócio-econômicas, passa a algoz dos desprotegidos não-fumantes.
Esquizofrenizado por posturas sociais antagônicas e por suas próprias contradições (saber que faz mal e sentir vontade de parar, mas não conseguir), o tabagista passa a fazer com neurose – e até medo de ser agredido, já que agora é oficialmente discriminado - um gesto que antes só lhe causava prazer. Ressurge a já esquecida rebeldia adolescente e quanto mais a sociedade condena, maior é a vontade de acender um cigarro.
Como desatar esses verdadeiros nós górdios, pessoais e/ou sociais? Como substituir rituais praticados durante toda uma vida? Como desfazer os passos de uma caminhada de décadas ou de uma política maquiavélica arquimilenar? São questões a serem enfrentadas por todos, fumantes ou não, de preferência com tolerância recíproca. Afinal, além da má cheirosa fumaça, existe coisa mais desagradável do que administradores desvinculados da realidade ou a arrogância daqueles que se acreditam “imunes” a vícios ou mesmo a exalar qualquer espécie de odor?
Voltando a falar sério, atualmente alguns estudiosos têm feito referências a uma possível predisposição genética para o tabagismo, mas, como no caso de outros supostos “desvios de conduta”, o tema ainda é polêmico. Se confirmada essa possibilidade, talvez a ciência possa criar mecanismos de prevenção, tornando dispensáveis os “esquadrões de caça”, para tristeza dos moralistas e saneadores (das mazelas alheias, não das próprias), sempre prontos a projetar suas frustrações sobre quem ousa não se enquadrar ao politicamente correto.
São questões complexas que emergem dessa rede de interconecções que compõe o viver, onde cada trama (ponto ou nó) pode representar um obstáculo à felicidade plena. Voltarei ao tema/desafio de detectar os nós cegos ou górdios, que se apresentam em profusão no cotidiano de todos nós. Gostaria que os leitores me ajudassem postando comentários, críticas e provocações ao debate sobre esse ou outros temas, para que, juntos, possamos buscar caminhos para o desfazimento dos nós que mais nos atormentam.



[1] Cf. as pesquisas da Olson Zaltman Associates.

2 comentários:

Anônimo disse...

belo texto !

O problema é mais sério nos meios frequentados por artistas , o cigarro é visto como rebeldia , insubordinação porém a voracidade e quantidade de fumantes torna as festas organizadas por eles lugares impossíveis de permanecer por 1 ou 2 horas , lugares fechados pedem um ar mais respirável sou a favor da lei , mesmo tendo amigos fumantes

diniz g júnior

Suzete Carvalho disse...

Olá, Diniz. Também sou a favor da lei. A questão que emerge, a meu ver, é a da manipulação a que estamos todos sujeitos,fumantes ou não. Tolerância e respeito mútuo são pressupostos das relações sociais. Todo preconceito absoluto degrada a vida em sociedade e tem um componente de compulsão como o próprio vício. No caso específico de ex-fumantes "redimidos", há como que uma catarse em que o prazer da crítica libera de certa forma as emoções reprimidas: "Se eu consegui, porque você que "é tão inteligente" não consegue? E dá-lhe projeção. É o que acontece, também, a meu ver, com os homofóbicos. São os "fundamentalistas pífios da Maioria Moral" de que fala o filósofo esloveno Slavoj Zizek. Discorri a respeito num Ensaio sobre a Inveja, publicado na Revista Thot,nº 80 pág.68/81.
Abração e obrigada pela visita. Também tenho acompanhado seu "desmemórias".