sexta-feira, 19 de junho de 2009

Nó Górdio III

Nó górdio III


Em resposta a comentário postado hoje a respeito da matéria do último dia 10, intitulada “Basta uma palavra”, prometi explicar aos leitores porque costumo adotar o cumprimento hindu “Namastê”.
Em primeiro lugar, poderia afirmar que o fato da Índia “estar na moda” não tem a ver com isso, já que uso essa expressão há quase vinte anos, mas fiel à minha convicção de que há uma necessária interconecção entre todas as coisas, seres e saberes, acredito que há, sim, uma relação entre esses fatos.
Pois bem, o Namastê (ou Namaskar, como se diz no norte da Índia), que muitos de nós temos escutado diariamente pela boca dos vários personagens que compõem a ala indiana da novela “Caminho das Índias” tem o significado aproximado de: “O divino que habita em mim, cumprimenta o deus que vive em você”, ou seja, oferecemos o melhor de nós ao que há de melhor em nosso interlocutor. Em suma, um reconhecimento da riqueza interior do outro, a quem oferecemos nosso profundo respeito.
Acredito que haja nos antigos ensinamentos uma sabedoria transcendental (condição para o transcendente) que em geral escapa à nossa racionalidade, já que encarados como mera “mitologia” ou mesmo como filosofias e religiões ultrapassadas ou supersticiosas, como faz parecer, por exemplo, a abordagem superficial que faz a novela, das complexas tradições culturais hindus.
É o caso, por exemplo, dos inúmeros deuses (com minúscula, mesmo) e avatares, tantas vezes simbolizados por animais, que se nos afiguram como “aberrações” debitadas à conta da ignorância que campearia aquela sociedade, haja vista a divisão de castas e a miséria da população.
Um amigo querido, culto, inteligente e muito racional, foi categórico: “Um deus macaco? É um absurdo. Isso eu não aceito”. Infelizmente, não tivemos oportunidade de discutir o assunto e aproveito para adiantar minhas desculpas por abordá-lo indiretamente, mas já que o tema de certa forma se relaciona com o objeto desta matéria, vamos a ele.
Em síntese de um Ensaio sobre Ghandi, postada em 23 de março, abordei o pseudo-politeismo das principais religiões da Índia, cujo panteão é encimado por Brahman, o Deus absoluto, do qual a trimurti formada por Brahma, Vishnu e Shiva, nada mais significa do que Suas principais manifestações: de Criador (do Universo), Mantenedor (do espírito) e Transformador (da vida).
Por outro lado (apenas para fins didáticos e, portanto, sem pretender estabelecer qualquer espécie de comparação), poder-se-ia dizer que, assim como as religiões “reveladas” convivem, por exemplo, com Virgens (Maria, no cristianismo e huri, no islamismo), anjos, arcanjos e serafins, o hinduísmo também propõe toda uma hierarquia de seres intermediários a serem cultuados.
Há, porém, que se considerar aqui, o pragmatismo dos sábios a quem competia estruturar e transmitir todo esse conhecimento às antigas civilizações que, assoladas pela fome e por condições climáticas peculiares (calor escaldante e ausência de chuvas na maior parte do ano), ameaçavam dizimar sua fauna – na qual se releva o fecundo gado vacum e as variadas espécies de símios -.
Ora, uma vaca abatida sem condições de preservação de sua carne, alimentará apenas algumas pessoas por um dia, quando, então se deteriorará, ao passo que, mantida viva, pode possibilitar a obtenção diária de leite por uma média de vinte anos. Já, quanto aos macacos, os sábios da antiguidade -assim como os judeus em relação ao dogma que proíbe a ingestão de carne de porco -, conheciam o perigo de contaminação que seu consumo representava.
Considerada a profunda influência da religião sobre uma população debilitada e inculta, fácil será depreender a opção mais lógica à sobrevivência de todos: tornar sagrados esses animais. E, nesse caso, haveria forma (ou fórmula) mais convincente do que a “eleição” de (mais) um deus, agora à imagem e semelhança daqueles que se pretende sacralizar? Será que esse meio (manipulação da fé) não justificaria os fins almejados (a saúde e a própria sobrevivência do povo indiano)?
Em sã consciência, será que se poderia afirmar não haver nenhuma espécie de manipulação por parte dos dignitários de religiões ocidentais que afirmam a existência do demônio, um ser maligno ornado com chifres, cauda e terríveis olhos de fogo, no qual tantos de nós fomos levados a acreditar não obstante nossa decantada racionalidade?
Por tudo isso, queridos leitores, apresento a debate Hanuman, o macaco amigo de Siva, herói do Ramayana, famoso épico da mitologia hindu, elevado da preliminar condição mitológica de rei (dos macacos) à categoria de semi-deus, ou deus-macaco num riquíssimo panteão, metáfora da ubiquidade da manifestação divina.
Convoco os leitores a me auxiliar a tentar desatar alguns dos nós górdios “envolvidos” nessa questão. Algumas sugestões: O(s) nosso(s) preconceito(s)? Nossa excessiva racionalidade? Nossa ignorância sobre as metáforas contidas nas mitologias, dentre as quais se destacam os próprios Evangelhos e suas parábolas? Nossa própria credulidade? Nossos condicionamentos culturais?
Namastê.

4 comentários:

Silvia Fávero disse...

Bom dia, Suzete. Como sempre o seu artigo foi uma aula de história.
Confesso que ao assistir a novela alguma coisas me espantam em uma civilização tão adiantada espiritualmente.
Uma delas é a quantidades de deuses ás vezes meio estrnhos para nós. Mas vc tem rezão na sua explicação. Acho que a nossa educação judaico-cristã nos faz ter muitos pré-conceitos.
Outra coisa que me espanta é o sistema de castas tão rígido, apesar dos exageros que existem em uma novela. Vc saberia me explicar de onde vem isso?
Bjs. Silvia.

Suzete Carvalho disse...

Olá, Sílvia. São os leitores fiéis e generosos como você, que me inspiram a continuar, pois disponibilizam parte de seu precioso tempo em benefício do diálogo cultural. Essa é, exatamente a proposta do blog.
A respeito do sistema de castas da sociedade hindu, devo dizer que, graças a Deus, já não é tão rigoroso quanto a novela faz supor, até porque o governano indiano está empenhado em erradicar esse verdadeiro "atentado" aos direitos humanos, criando leis que proibem qualquer discriminação.
A criação desse sitema remonta ao antigo brahmanismo, hoje hinduísmo, cujos sacerdotes, chamados brahmanes, visando manter a hegemonia (e as mordomias) insituiram o dogma da distinção de castas como determinação divina.
Arrogando-se o direito de intérpretes exclusivos dos Vedas e outros Livros Sagrados, impuseram à sociedade indiana uma quádrupla divisão de classes (castas)como destino inalienável: No cume, situavam-se eles próprios, a quem, por direito divino, cabiam todos os privilégios. Esses são os chamados brahmanes. Logo abaixo, na hierarquia, situaram, por precaução os guerreiros (donos das armas), seguidos pelos mercadores (donos do dinheiro), colocando na base da pirâmide social os chamados intocáveis ou párias, miseráveis e incultos (e, portanto, inofensivos)a quem competia o serviço sujo, pesado, difícil.
Mas isso, a meu ver, não depõe contra os sábios ensinamentos da religião em si, e sim contra o Poder, então exercido pela classe sacerdotal, que exorbitou, em seus próprios interesses, das prerrogativas que lhes eram conferidas, assim como o fizeram os inquisidores católicos, que, milênios mais tarde se arrogaram o direito divino de vida e morte.
A diferença é que a religiosidade hindu incorporou essa distinção social, que de alguma forma tem a ver com a nossa própria divisão de classes, guardadas as devidas proporções, o fato de (até certo ponto) podermos transpor a barreira que nos separa o tipo de Poder ao qual nos submetemos hoje: o Poder Econômico.
Vou parar pra não transformar esta resposta num "compêndio".
Beijos, Namastê e volte sempre.

Anônimo disse...

Oi Suzete
Suas reflexões são sempre reveladoras. Consigo entender muito bem as inúmeras divindades criadas pela humanidade e sempre com a posição de encontrar o sentido político da "coisa". A supremacia do Homem na Terra foi pela sua inteligência/astúcia. Precisou se des-envolver. Isto requer estratégias, todas para garantir a sobrevivência. Capitalismo x Comunismo. O capitalismo venceu porque era branco, bom e falava inglês. Será mesmo? Ou o que houve foi simplesmente o crescimento global da população, que por sua vez gerou a necessidade de maior quantidade de alimentos, bens, remédios...
Isto inclui as pesquisas genéticas, a engenharia de alimentos e várias outras ciências.
A antropologia explica alguns comportamentos. Mas e no Brasil? Tem explicação? E o Homem chegou até a Lua em 1969 e atualmente não consegue uma só viagem ao espaço com êxito total...tudo muito estranho...depois estamos sozinhos no universo? E os elementos de cristais puros que são encontrados no corpo humano e na natureza.
Vemos o que há.
Há de ser o que ainda não vemos?
Bjos
Namastê
Maristela Ajalla

Suzete Carvalho disse...

Olá, sempre bem-vinda Maristela.
A meu ver, a supremacia do Homem foi mesmo pela força e pela descoberta (que alguns atribuem ao acaso) de armas rudimentares que o "des-envolvimento" do raciocínio foi permitindo que aprimorasse. Há um filme épico - cujo nome me escapa, mas que tem a ver com "epopéia", que mostra o (suposto) momento em que o homem-ainda-macaco percebe a potencialidade bélica de um grande osso.
Milênios depois, o Capitalismo surgiu ancorado nas propostas da Reforma, em que o protestantismo desmistificou alguns dogmas da Igreja, mostrando que o que estava em jogo mesmo era o dinheiro.
Quanto ao comunismoo, me parece, despencou porque se estruturava nas propostas dualistas de Marx (capital x mais-valia) deixando de lado (entre outras) a questão da liberdade.
A antropologia,durante muito tempo explicou comportamentos sob um prisma patriarcal, que não leva em conta a participação da mulher (com sua inteligência e astúcia - sempre vistas como qualidades masculinas) mas atualmente está sendo desmascarada por estudiosos(as) menos comprometidos(as) com o patriarcalismo.
De resto, nunca há explicações únicas, já que estamos todos interligados numa complexa rede de experiências, saberes e relações (ditas) sociais.
Des-enrolar todos esses nós górdios provavelmente somente é dado a uma Grande Mente (Aquilo que não vemos).
Volte sempre, suas provocações fazem a diferença.
Namastê.