segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Justiça, Autoridade, Poder e Liberdade

Termos abstratos e relativos como as palavras-chave do tema ora proposto – justiça/autoridade/poder/liberdade -, são potencialmente vagos e ambíguos, pois se situam num campo de contornos imprecisos, ou seja, cada um pode dar-lhes a extensão ou o sentido que melhor preencham seus propósitos. Portanto, o que lhes confere significação é o uso que delas fizermos.
Da ancestral Lei de Talião até os dias de hoje, o conceito de justiça, por exemplo, viajou no tempo e no espaço, assumindo as mais variadas conotações, ao sabor das ideologias predominantes ou do contexto sócio-político e filosófico-cultural, configurando um controvertido quadro no decurso da história.

Aristóteles, para quem o conhecimento pelo conhecimento não fazia sentido, preocupava-se com as “excelências” ou princípios éticos (arethe), dentre as quais incluía a justiça, que todos temos em potência, a ser transformada em “ato” na busca da felicidade. Essa a razão teórica ou contemplação intelectual, vista pelo filósofo como uma virtude dialética que se caracteriza como “justo meio” (a dourada mediania ascendente), libertação dos extremos (carência e excesso).

Já na função racional da alma humana que se expressa como razão prática, Aristóteles apresenta a prudentia , no sentido de discernimento, como a grande excelência ética, ao passo que a expressão teórica se dá pela via da Sabedoria. Para o jus-filósofo Michel Villey “o homem prudente é aquele que age dentro do ‘justo meio’ usando de uma visão crítica”.

O enfoque de que as partes não são iguais e que fazer justiça é tratar desigualmente os desiguais é uma leitura moderna da concepção de Aristóteles, para quem a equidade tem a função de corrigir lacunas, sendo o equitativo e o justo, a mesma coisa, porém o equitativo “é ainda melhor, pois mesmo sendo justo não é o justo legal, mas uma retificação da justiça legal”.

Essa concepção transcende a conotação de igualdade concebida pelos contratualistas do século XIX que, lastreados nos pressupostos individualistas da Revolução Francesa, alimentaram a utopia da igualdade entre as partes, que teve graves consequências sociais, relegando as minorias ao ostracismo e à hipossuficiência.

Nas palavras de Roberto A.R.de Aguiar, “nos tempos de hoje os oprimidos começam a desconfiar dessa justiça” que lhes aparece como um engodo, pois vende a imagem de uma neutralidade que não existe, baseada numa igualdade que também não existe, mas que respalda o exercício do poder e legitima a dominação.

Aqui, o que emerge como “irmã da justiça” é a segurança, em nome da qual os detentores do poder cometem arbitrariedades, onde tudo é possível. Na verdade o mundo se pauta num grande jogo de poder, exercido sempre por grupos minoritários (em termos numéricos), a quem cabe a possibilidade de escolha e de cobrança, a tomada de decisões e o controle.

Ora, é certo que sempre haverá maior distribuição de justiça quanto maior for a possibilidade de participação das maiorias (numericamente) dominadas, hoje vistas como “minorias” numa flagrante inversão de valores tanto dos macro-poderes (governantes) como pelos micro-poderes (por exemplo os pais de família), característicos das sociedades patriarcais.

Em nível internacional, a questão também emerge, na verdadeira exploração e opressão que os países ditos desenvolvidos exercem sobre seus “primos pobres”, num eterno colonialismo hoje rebatizado de globalização, em evidente violência simbólica: “se não fizerem o que mandamos, cortaremos o auxílio econômico, etc.)”.
Esse recurso autoritário é utilizado também nas relações familiares em que os detentores do poder cultural e econômico ameaçam e castigam, às vezes violentamente, sob a desculpa da “proteção”, mulheres e crianças indefesas.

O que confere legitimidade a esse Poder-Autoridade é a aceitação dessas famílias ou nações pelos “subalternos”, aqueles que se curvam à “Lei do Peixe”. Organização, liderança, disciplina, justificativas, estratégias, táticas (dentre as quais, a meu ver, a violência simbólica), são os “recursos” que compreendem a “família do poder”, para usar a expressão do escritor Charles Merrian.

As relações de poder envolvem questões de extrema complexidade como direito, justiça, força, dominação, violência, autoridade, hegemonia, no mínimo, e se “estamos condenados a ser livres” (Sartre), há que exercitarmos nosso espírito crítico para nos capacitarmos ao exercício da liberdade, lembrando que “o conceito de liberdade pressupõe a existência de alternativas” como diz Eduardo Gianetti da Fonseca .

A propósito, Rollo May nos dá um parâmetro para a sutileza desse termo, ao situar a liberdade no exato instante que medeia o estímulo e a resposta. Esse o momento do livre arbítrio, em que eu “me-dito” com discernimento a resposta a ser apresentada a mim mesma e ao outro, que não será uma reação, mas sim uma ação respaldada tão-somente por minha ética interior, minha liberdade ontológica.

*Resumo de palestra ministrada em curso sobre Introdução ao Pensamento Filosófico, em SP, em 19/11/96.


2 comentários:

Eugênia Pickina disse...

Suzete, o tema tratado, de fato, é complexo... Resgatar Aristóteles fez sentido. Igualmente a desconfiança dos oprimidos (ou mais fracos) pela lógica dos modernos, que buscam segurança para manter "blindada" a desigualdade material, que emerge do real, mas é disfarçada nos códigos, por meio da chamada da "igualdade formal" (é a igualdade formal o garante da desigualdade material). Não sei, mas a angústia de um sistema capitalista que se vale do direito (e da ciência) como meios e recursos para manter o status quo e os mesmos privilégios conquistados pela burguesia pós-revolucionária... Ainda bem, como dizia o filósofo da esperança, "liberdade, igualdade e fraternidade" não são direitos 'burgueses', mas sim universais. Um dia, a justiça caminhará com misericórdia e usará a "medida do real". Obrigada pelo texto. Bjs. Eugênia.

Suzete Carvalho disse...

Olá, Eugênia. Desculpe pela demora em responder, mas, como sabe, estive fora por uns dias.
Liberdade, igualdade e fraternidade "deveriam ser" direitos universais, mas infelizmente não o são em nenhum sistema de governo.
Resta manter a esperança (essa utopia revolucionária, como diz Paulo Freire).
Façamos a nossa parte "botando a boca no mundo" e agindo com compaixão.
Obrigada por manter vivo esse diálogo.
Abraço carinhoso.