segunda-feira, 6 de junho de 2011

Eu quero ser Papa

Agumas lembranças da infância insistem em permanecer em nossa memória, como a exigir uma explicação lógica, especialmente quando os fatos são intrigantes à mente infantil. Tenho muitas dessas reminiscências mas uma, em especial, me ocorre neste momento.
Eu devia ter uns sete, oito anos, quando um casal muito interessante instalou-se na vizinhança. Como não tinham filhos, seu José e dona Maria sempre levavam consigo algumas balas, para deleite da criançada e seu próprio, pois se sentiam recompensados com nossa alegria ao encontrá-los. Mas o que nos atraía neles, realmente, era o fato de trabalharem num circo.
“O Senhor é palhaço, seu José?” – “Mais ou menos”, respondia enigmaticamente. - “Como assim, mais ou menos?” – “É que no circo, como na vida, palhaço também é gente séria e vice-versa”. – “Vice o quê?”. Meu pai se compadeceu de nossa curiosidade: “Está bem, amanhã levo você e sua irmã para assistirem ao espetáculo”.
Para nossa decepção, nossos vizinhos não estavam caracterizados como imaginávamos, mas representavam um padre e uma freira, entre vários outros, num esquete que não entendi. O que me ficou na memória, foi o fato de o Sr. José, a todo momento adentrar em cena, gritando: “Eu quero ser Papa”, ao que todos respondiam: “Eu também!” – “Porque todo mundo quer ser Papa?, perguntei. Jamais esqueci o sorriso de meu pai: “Um dia você vai entender, filha”.
Hoje, com certa tristeza, entendo. E mais me entristeço quando percebo que essa ambição desmesurada desmantela estruturas que teriam na união uma força inexpugnável, pois, divididos, os cardeais fragmentam os interesses do rebanho, tornando-o um alvo fácil de predadores.


*Publ. in Revista do Ypiranga n. 155, março/abril/2011, pág. 9.

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