COLUNA DA SUZETE
Noêmia
Sempre dei muita importância aos
sonhos que, se bem analisados, em geral apontam um caminho para entendermos alguma
questão que está a pedir nossa atenção, já que acredito que o subconsciente não
se faz de rogado se a ele entregarmos humildemente nossas preocupações. Sabe-se inclusive que em algumas culturas
xamânicas há uma espécie de ritual matutino em que os membros da família se
dedicam a ouvir e trocar ideias sobre seus sonhos, antes de se entregarem às
ocupações do dia.
Pois bem, noite dessas sonhei com
Noêmia e, ao acordar, lembrei que havia deitado pensando que o prazo para
escrever a crônica de Maio estava se esgotando.
Maio, mês cujas principais celebrações – Dia do Trabalhador, das Mães,
da Libertação da Escravatura - se bem consideradas, nos remetem a um tema que
transcende a própria sobrevivência: o direito à igualdade de oportunidades e de
dignidade no trabalho, no lar, na sociedade.
Tentando interpretar o sonho, no
qual Noêmia tentava agredir um juiz, lembrei de como a conheci, na década de
70. Servidora Pública durante o dia, estudando à noite, dona de casa e mãe, eu
estava à beira de um estresse quando alguém recomendou que eu contratasse
Noêmia: “Olha, dona, eu lavo, passo e cozinho o “triviá”, mas só “inzinjo” bife
todo dia”. Informei que sentia muito,
mas não poderia contratá-la, porque carne vermelha não fazia parte de nosso
cardápio. Para minha surpresa, ela respondeu: “Então tá bão, vai, eu aceito
comer só o que vocês come...”.
Muito sofrida e sempre “com um pé
atrás”, Noêmia era o que se pode chamar uma “figura”, mas logo se adaptou ao
ritmo da casa. Antes de contar como meu sonho entrou no contexto desta crônica,
cabe lembrar que, àquela época, a lei não concedia o direito ao recebimento do
13º salário aos servidores públicos (e eu o era) e às empregadas domésticas.
Tentando compensar a exclusão – que eu também sentia na própria pele – na
antevéspera de Natal (menos de seis meses após havê-la contratado) entreguei a
Noêmia, à guisa de abono, uma quantia correspondente à metade de seu salário.
Qual não foi minha surpresa
quando ela, atirando com violência o maço de notas sobre a mesa, declarou: “Não
preciso de esmola. Vou procurar é já meus direitos na Justiça”, e lá se foi
pisando duro para o Tribunal do Trabalho (que, aliás, estava em recesso de fim
de ano). De qualquer forma alguém a
informou de seu engano, pois, no dia seguinte, reapareceu simulando
condescendência: “Tá bão, vai, desta vez vou aceitar aquele “meu” dinheiro e
não se fala mais nisso!”. Embora penalizada,
entreguei o dinheiro, acrescido do valor do aviso prévio e das verbas
rescisórias, pois nunca prescindi de respeito e paz.
Enfim, quero crer que o sonho foi
uma metáfora de meu sonho real que é ver, ainda que paulatinamente, que a cada
ano, novas conquistas sociais vão sendo comemoradas. Hoje, ao menos diante da lei, trabalhadores e
trabalhadoras fazem jus aos mesmos direitos; ainda que a passos lentos, o
índice de analfabetismo vem diminuindo; nem todas as mães que trabalham fora
cumprem necessariamente uma tripla jornada, pois muitas já contam com
companheiros mais conscientes; e o racismo – legado de uma cultura colonialista
– já é criminalizado pela legislação, em que pesem os esforços em contrário
daqueles a quem aproveita a ignorância humana.
Resta dizer que está também em
nossas mãos, duzentos milhões de cidadãos e cidadãs brasileiras que somos,
consolidar definitivamente os direitos democráticos tão arduamente
conquistados. Bastaria que cada um(a) de nós fizesse a parte que lhe compete,
elegendo conscientemente os nossos representantes sem nos deixar levar por
pseudo moralistas ou por notícias falsas retransmitidas por ingênuos “laranjas”
do conservadorismo; dando um basta à
violência doméstica – raiz da violência urbana; educando nossas crianças para a
Paz; agindo com a ética que exigimos das outras pessoas e respeitando-as pelo
simples fato de existirem e teríamos muito, muito, mais a comemorar.
Publ. no Jornal “Gazeta do
Ipiranga”, 10/05/2013, Cad. A-2.