sexta-feira, 10 de maio de 2013


COLUNA DA SUZETE

                                                               Noêmia                                                                                     

 

Sempre dei muita importância aos sonhos que, se bem analisados, em geral apontam um caminho para entendermos alguma questão que está a pedir nossa atenção, já que acredito que o subconsciente não se faz de rogado se a ele entregarmos humildemente nossas preocupações.   Sabe-se inclusive que em algumas culturas xamânicas há uma espécie de ritual matutino em que os membros da família se dedicam a ouvir e trocar ideias sobre seus sonhos, antes de se entregarem às ocupações do dia.

Pois bem, noite dessas sonhei com Noêmia e, ao acordar, lembrei que havia deitado pensando que o prazo para escrever a crônica de Maio estava se esgotando.  Maio, mês cujas principais celebrações – Dia do Trabalhador, das Mães, da Libertação da Escravatura - se bem consideradas, nos remetem a um tema que transcende a própria sobrevivência: o direito à igualdade de oportunidades e de dignidade no trabalho, no lar, na sociedade.

Tentando interpretar o sonho, no qual Noêmia tentava agredir um juiz, lembrei de como a conheci, na década de 70. Servidora Pública durante o dia, estudando à noite, dona de casa e mãe, eu estava à beira de um estresse quando alguém recomendou que eu contratasse Noêmia: “Olha, dona, eu lavo, passo e cozinho o “triviá”, mas só “inzinjo” bife todo dia”.   Informei que sentia muito, mas não poderia contratá-la, porque carne vermelha não fazia parte de nosso cardápio. Para minha surpresa, ela respondeu: “Então tá bão, vai, eu aceito comer só o que vocês come...”.

Muito sofrida e sempre “com um pé atrás”, Noêmia era o que se pode chamar uma “figura”, mas logo se adaptou ao ritmo da casa. Antes de contar como meu sonho entrou no contexto desta crônica, cabe lembrar que, àquela época, a lei não concedia o direito ao recebimento do 13º salário aos servidores públicos (e eu o era) e às empregadas domésticas. Tentando compensar a exclusão – que eu também sentia na própria pele – na antevéspera de Natal (menos de seis meses após havê-la contratado) entreguei a Noêmia, à guisa de abono, uma quantia correspondente à metade de seu salário.

Qual não foi minha surpresa quando ela, atirando com violência o maço de notas sobre a mesa, declarou: “Não preciso de esmola. Vou procurar é já meus direitos na Justiça”, e lá se foi pisando duro para o Tribunal do Trabalho (que, aliás, estava em recesso de fim de ano).  De qualquer forma alguém a informou de seu engano, pois, no dia seguinte, reapareceu simulando condescendência: “Tá bão, vai, desta vez vou aceitar aquele “meu” dinheiro e não se fala mais nisso!”.  Embora penalizada, entreguei o dinheiro, acrescido do valor do aviso prévio e das verbas rescisórias, pois nunca prescindi de respeito e paz.

Enfim, quero crer que o sonho foi uma metáfora de meu sonho real que é ver, ainda que paulatinamente, que a cada ano, novas conquistas sociais vão sendo comemoradas.  Hoje, ao menos diante da lei, trabalhadores e trabalhadoras fazem jus aos mesmos direitos; ainda que a passos lentos, o índice de analfabetismo vem diminuindo; nem todas as mães que trabalham fora cumprem necessariamente uma tripla jornada, pois muitas já contam com companheiros mais conscientes; e o racismo – legado de uma cultura colonialista – já é criminalizado pela legislação, em que pesem os esforços em contrário daqueles a quem aproveita a ignorância humana.

Resta dizer que está também em nossas mãos, duzentos milhões de cidadãos e cidadãs brasileiras que somos, consolidar definitivamente os direitos democráticos tão arduamente conquistados. Bastaria que cada um(a) de nós fizesse a parte que lhe compete, elegendo conscientemente os nossos representantes sem nos deixar levar por pseudo moralistas ou por notícias falsas retransmitidas por ingênuos “laranjas” do conservadorismo;  dando um basta à violência doméstica – raiz da violência urbana; educando nossas crianças para a Paz; agindo com a ética que exigimos das outras pessoas e respeitando-as pelo simples fato de existirem e teríamos muito, muito, mais a comemorar.

 

Publ. no Jornal “Gazeta do Ipiranga”, 10/05/2013, Cad. A-2.

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