segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Salomé e os ruídos de comunicação

Nos últimos tempos, tenho tido a felicidade de contar, em quase todas as minhas crônicas para a Gazeta do Ipiranga, com a importante parceria do ilustrador/caricaturista Danilo Marques. Eu escrevo e ele, generosamente, ilustra.  Hoje, celebramos um novo desafio, invertendo a situação: ele mandou a imagem e eu tentei (re)desenhar sua arte em palavras.  Espero haver conseguido.
O fato é que as imagens, assim como os aromas, têm o condão de ativar nossa memória, trazendo ao novo contexto antigas experiências que nos marcaram, algumas alegres e até engraçadas, outras mais tristes ou até mesmo dolorosas. Neste caso, a visão de alguém indignado “gritando” ao celular (imagem tão atual) me fez viajar a um tempo em que, dar um simples telefonema era uma verdadeira epopeia.
Acredito que muitos homens e mulheres do Ipiranga estarão lembrados de que até 1955 poucas pessoas da região tinham o privilégio de possuir um telefone residencial.  Quando, naquele ano, a Telefônica finalmente estendeu novas linhas à Região, desencadeou verdadeira euforia, inclusive por parte dos jovens de ambos os sexos, até então relegados à comunicação oral.
Numa época em que “ficar” – em especial para as adolescentes - significava “ficar em casa” sob os olhares zelosos das mães, sujeitas ainda a uma legislação que as considerava “semi-capazes” para os atos da vida civil e, portanto, sempre preocupadas com o que os outros iriam pensar, o acesso à telefonia soava como uma espécie de libertação das amarras (ou, se preferirem, “correntes”) que as atavam a uma cultura tradicional e androcêntrica. Ledo engano...
Antes que minha conselheira Dª Nena intervenha, dizendo que eu estou divagando, passo aos fatos objeto da crônica.  Pois bem, foi exatamente naquele ano que eu, que acabara de completar quinze anos e aquele que veio a ser marido (então com vinte), começamos a “namorar escondido”, com encontros ocasionais à saída da escola e uma ou outra “escapadela” para uma rápida conversa numa esquina próxima.
Por uma dessas coincidências que dão mais sabor à vida, nossas linhas telefônicas foram instaladas no mesmo dia e, de imediato, decoramos os números respectivos, prometendo que a primeira ligação seria “nossa”.  No auge do entusiasmo com a novidade, corri para a casa de minha - até hoje - amiga Clara, que também havia sido contemplada com uma linha telefônica e disquei (sim, a gente “discava” os números, comprometendo a vitalidade das unhas) o número que primeiro havia decorado.

- “Por gentileza, o João está?”.  Uma voz que me soou conhecida, retrucou: “Ah, então o nome dele é João!”.  – “Desculpe, foi engano”, foi a única coisa que me ocorreu dizer, antes de desligar com o coração aos pulos, pois a voz era, como já devem ter percebido... de minha mãe! Sim, eu ligara para a minha própria casa e, literalmente, entregara nossa cabeça numa bandeja, a minha e a de João Baptista.

Opressão pela linguagem

“A muitas pessoas pode passar despercebido, dado nosso condicionamento cultural, mas a mim me incomoda ver repetidas à exaustão, entre outras, frases como “Um país se faz com homens e livros”, escritas num contexto social fortemente androcêntrico e racista, em que às mulheres – ainda que alçadas a “importantes” personagens de romances e histórias infantis -   cabia o papel exclusivo de cuidarem da casa, de seu “senhor” e suas crianças. Às Anastácias, duplamente discriminadas, competia meramente servir às famílias de “bem”, ou, se preferirem, de “bens”.
Nada contra nosso grande escritor, muito ao contrário – até porque minha infância foi marcada pelas deliciosas reinações que o mais famoso Sítio literário do Brasil nos oferecia -, mas há que considerar que hoje vivemos um novo contexto social que, (re)tirando as mulheres do âmbito privado e do papel exclusivo de cuidadoras, santas ou prostitutas, começa a alçá-las, como às demais “ditas” minorias, a co-partícipes de fato e de direito de seus próprios destinos e, por consequência, dos destinos do país.  Hoje sabemos, pois, que a sociedade é bem mais complexa do que uma linguagem ultrapassada pode comportar.
Assim, acredito que, se nos propusermos a substituir a palavra “homem” pela palavra “pessoa”, toda vez que nos referirmos aos seres humanos em geral, conseguiremos paulatinamente amenizar uma das injustiças sócio-culturais mais potentes dos últimos milênios: a opressão pela linguagem.  Por outro lado, livros são, sim, necessários à nossa formação – eu mesma me considero um bicho-de-livro desde sempre - , mas conhecimento teórico já não é suficiente para dar conta das profundas desigualdades sociais que a cultura excludente gerou.
Já não nos basta repetir mântrica e aleatoriamente frases de pressuposta sabedoria das “autoridades” eleitas pelos donos do Poder, seja ele político, econômico ou literário.  Ler, sim, sempre, mas procurar agir conscientemente em prol de uma efetiva cidadania para todas as pessoas, participando na medida do possível de movimentos sociais, usando uma linguagem inclusiva e, portanto, menos androcêntrica, seria um passo importante para combater o analfabetismo funcional, midiático e ideológico, colaborando efetivamente para a implantação da Cultura de Paz que tanto almejamos.”


sc/ 26/08/2013